A reforma tributária aprovada pela Câmara concedeu tratamento favorecido às classes mais abastadas. O consumo de serviços como o de educação, saúde e atividades artísticas e culturais, que é relativamente alto nesses segmentos, pagará apenas 40% da alíquota do imposto. Restaurantes e parques de diversão terão um regime especial. O consumo dos pobres, à exceção da cesta básica, arcará com o imposto cheio. Provou-se o poder de lobbies para obter ou ampliar privilégios.
O projeto original previa alíquota única para bens e serviços, em linha com as versões mais modernas do método do valor agregado (IVA), como a da Nova Zelândia. A experiência constatou que alíquotas múltiplas causam ineficiências, reduzem o potencial de crescimento e beneficiam os mais ricos. A União Europeia, que no início adotou três a cinco alíquotas, não conseguiu, depois, aprovar a alíquota única. Erros na partida tendem a ser perenizados.
O Brasil adotou o IVA em 1965, antes de países desenvolvidos, mas o dividiu em três partes: a União tributava produtos industrializados; os estados, a circulação de mercadorias; e os municípios, os serviços (ISS) com alíquota de 2% a 5%, em substituição ao imposto sobre indústrias e profissões. Acidentalmente, criou-se um privilégio. A alíquota de serviços favorece os ricos. Os pobres pagam alíquotas mais elevadas quando consomem alimentos ou eletricidade. Um escândalo.
“A alíquota de serviços favorece os ricos. Os pobres pagam impostos mais altos em alimentos e energia”
Somos o país da meia-entrada e dos “direitos adquiridos”. Divulgada a PEC 45, tributaristas e associações comerciais e de classe se mobilizaram contra a reforma. Falou-se no “absurdo” de aumentar tributos na educação, o que não tem a menor procedência. Os ricos é que seriam tributados. A educação gratuita continua como tal. Argumentou-se que “os serviços são o setor que mais emprega”. Puro papo furado. Isso ocorre apenas porque ele representa, quando incluído o setor público, mais de 70% do PIB. Ademais, cerca de 90% das empresas de serviços estão no Simples, não alcançado pela reforma. No modelo do IVA, seus lucros tendem a ser mantidos.
A redução na alíquota de alguns serviços implicará aumento de carga para os demais setores, incluindo os produtos consumidos pelos pobres, o que poderá manter a má distribuição de renda e a desigualdade social.
No livro The Crisis of Democratic Capitalism, Martin Wolf defendeu profunda reforma do capitalismo para salvar a democracia dos países ricos dos efeitos da desigualdade social e da estagnação da renda da classe média. Particularmente grave é a emergência de uma classe de plutocratas que se beneficiam de certas regras tributárias. Para tanto, Wolf lista cinco metas. Uma delas é “abolir privilégios para poucos”.
A reforma livrará o Brasil do manicômio tributário que contribuiu para a desindustrialização precoce e para a armadilha do baixo crescimento que nos afligem. Comemoremos, mas ao mesmo tempo lamentemos a prevalência dos privilégios de quem consome serviços.
Publicado em VEJA de 2 de agosto de 2023, edição nº 2852