O argumento dos lobbies que obtiveram exceções na reforma tributária (PEC 45) foi a elevação de sua carga tributária. A maioria é do setor de serviços. Na verdade, o aumento corrigiria um privilégio da reforma tributária de 1965. O Brasil, um dos pioneiros da tributação de consumo pelo método do imposto sobre o valor agregado (IVA), optou, então, por diferenciar bens e serviços, ao contrário do regime único que prevaleceria em todo o mundo. A fragmentação favoreceu acidentalmente os serviços, consumidos pelas classes mais ricas.
A reforma se apoiou nas bases tributárias das três esferas de governo. O imposto de consumo federal tornou-se o IPI. O imposto estadual sobre vendas e consignações virou o ICM (depois ICMS, na Constituição de 1988). Nos municípios, o imposto sobre indústrias e profissões se transformou no ISS, mantendo as alíquotas de 2% a 5%. No ICMS prevaleceu a alíquota de 18% na maioria dos estados. Assim, quando os segmentos mais abastados consomem itens como educação, saúde, lazer, serviços profissionais e outros, pagam tributos equivalentes a 11% a 28% do que é cobrado dos pobres que consomem bens.
“As exceções da reforma manterão privilégios que explicam por que somos uma sociedade desigual”
Os estudos que deram origem à PEC 45 consideraram a experiência de 174 países que adotam o método do IVA. Valeram-se também da vasta literatura acadêmica sobre o tema. Ambas recomendavam a alíquota única para bens e serviços. Os IVAs europeus dos anos 1960 a 1980 haviam recorrido a alíquotas múltiplas, beneficiando educação, saúde e agricultura. Mais tarde, constatou-se que a multiplicidade favorecia os mais ricos e criava distorções decorrentes da busca das empresas por enquadramento nas alíquotas mais baixas. A União Europeia tentou, sem sucesso, unificar as alíquotas, provando a dificuldade de eliminar privilégios.
Os lobbies brasileiros diziam que a reforma aumentaria a tributação da educação, do saneamento e de outros itens, quando o efeito seria o aumento dos custos para os ricos. O contribuinte do IVA é o consumidor, não o provedor dos respectivos serviços. O certo teria sido uma longa transição até que a alíquota dos serviços fosse a mesma dos bens. Os argumentos falsos perderiam força. Agora, Inês é morta.
Felizmente, a reforma acarretará enorme simplificação da tributação do consumo. O manicômio tributário será substituído por um sistema dotado de elevada racionalidade. O potencial de crescimento econômico vai aumentar, mas as exceções manterão privilégios que continuarão a explicar por que somos a sociedade mais desigual do planeta.
O texto aprovado pelo Senado prevê que em cinco anos seja promovida uma revisão dos privilégios. Ao contrário do que esperam o governo e setores da sociedade, creio que as chances de êxito dessa revisão tendem a ser mínimas ou inexistentes. Se os lobbies conseguiram conquistar facilmente os parlamentares para aprovar as exceções, com maior razão poderão fincar trincheiras para preservar o tratamento favorecido.
Publicado em VEJA de 1º de dezembro de 2023, edição nº 2870