Um horrendo caso de pedofilia numa escola em São Paulo, incluindo detalhes chocantes de violências cometidas contra crianças de 4 anos em motéis da cidade com a participação dos proprietários da instituição de ensino, de uma professora e do motorista da perua escolar. As mães das supostas vítimas registram a denúncia em detalhes num distrito da capital paulista e o delegado responsável, desde o início, formou convicção da culpa dos envolvidos, tendo como uma das “provas” principais um telex enviado por uma perita do Instituto Médico Legal atestando que o laudo de um dos menores havia dado positivo para evidências de abuso sexual.
Esses foram os ingredientes que colocaram a Escola Base no centro de um dos maiores escândalos policiais das últimas décadas. A intensa cobertura da imprensa sobre o caso ocorrido em 1994 entrou também para a história por não levar em conta as inúmeras inconsistências da investigação. O resultado acabou sendo desastroso. A escola foi destruída por vândalos e nunca mais voltou a abrir as portas. Os responsáveis tiveram suas vidas destruídas e, mesmo inocentados ao final do processo, ficaram marcados para sempre pelo episódio, citado desde então como um dos maiores exemplos de catástrofes produzidas pela conjunção de um trabalho superficial conduzido pelas autoridades policiais e a ansiedade jornalística para alimentar manchetes com escândalos.
Primeiro jornalista a divulgar essa denúncia, dando início ao rastilho de pólvora que destruiu para sempre as reputações dos envolvidos, o repórter Valmir Salaro, da Rede Globo, é o protagonista do perturbador documentário Escola Base — Um repórter enfrenta o passado, em cartaz na plataforma Globoplay. Ao longo de mais de quarenta anos de carreira, Salaro tornou-se um dos melhores e mais conceituados repórteres policiais do país. Foi por iniciativa dele o retorno ao episódio de 1994, tendo como objetivo principal fazer um mea-culpa sobre o tom sensacionalista e irresponsável que contaminou as matérias sobre o caso.
O cruel circo de mídia teve como marco inicial sua reportagem na Globo, mas foi alimentado na sequência por boa parte dos outros veículos, incluindo VEJA. Num gesto raríssimo na imprensa brasileira, Salaro pede hoje desculpas aos acusados injustamente durante essa cobertura jornalística. No início das investigações, profissionais como ele não tentaram com o devido afinco ouvir as versões dos acusados e, num primeiro momento, confiaram cegamente nas palavras do delegado. As posteriores indenizações do estado e dos veículos de imprensa jamais repararam esses danos.
Embora derrape um pouco no exagero do uso do tom dramático em algumas cenas, o documentário de 1h46 da Globoplay tem méritos inegáveis, sendo o maior deles o de mostrar o que não conseguiu mostrar. As mães responsáveis pela denúncia fogem do repórter, assim como o delegado responsável pela investigação e a perita que assinou o laudo (um segundo laudo, produzido depois, descartou as evidências de abuso sexual). Fica evidente o constrangimento geral com a falsa denúncia e a escala impressionante que o caso alcançou, mesmo numa era em que não havia ainda as redes sociais. Na incômoda herança da Escola Base, o único a dar a cara a bater é justamente uma das estrelas do jornalismo da Globo. Ele merece aplausos pela forma corajosa com que decidiu percorrer uma Via-Crúcis em busca da expiação de um enorme erro profissional.