A tragédia das enchentes do Litoral Norte chamou mais uma vez a atenção do país para o gravíssimo problema da ocupação desenfreada de moradias populares em áreas de risco. Trata-se de um efeito colateral da especulação mobiliária, que avançou firme nas últimas décadas na construção de casas e condomínios de luxo nas praias de cidades como São Sebastião, justamente a mais castigada pela catástrofe do Carnaval. Cada novo empreendimento atrai para o município a mão de obra necessária para a construção e manutenção dos imóveis e, sem o devido planejamento urbano, as famílias de baixa renda ocupam os morros, único lugar onde há terrenos disponíveis para a realidade financeira delas. Trata-se de um problema de décadas e a verdade é que nenhum prefeito ou governador adotou qualquer iniciativa mais eficaz para acabar com esse círculo vicioso.
Como as praias de São Sebastião estão entre os trechos mais valorizados do Litoral Norte, a pressão econômica para tentar passar por cima das regras ambientais destinadas a frear as construções em lugares impróprios é permanente. O governador Tarcísio de Freitas, que decretou estado de calamidade no município e nas cidades vizinhas após as enchentes, tem um exemplo bem ilustrativo desse dilema dentro do seu próprio gabinete.
Coordenador do programa de governo de Tarcísio na bem-sucedida disputa ao Palácio dos Bandeirantes e atual secretário de Projetos Estratégicos do Estado de São Paulo, Guilherme Afif Domingos deu entrada em 2008 no projeto de construção de um condomínio de cinquenta mansões na Praia da Baleia, um dos trechos mais cobiçados daquele município. Denúncias enviadas ao Ministério Público relacionadas ao empreendimento a ser erguido em área nativa da Mata Atlântica, com dezenas de espécies da fauna e flora ameaçadas de extinção, deram início a uma batalha judicial. A construção foi embargada em 2011 e, quatro anos depois, uma decisão dos tribunais anulou a licença ambiental concedida ao empreendimento, mas a discussão não parou por aí.
Após uma série de reviravoltas no processo, uma novidade enterrou de vez a intenção original de Afif Domingos. Foi criada em 2020 uma Área de Proteção Ambiental pela lei municipal nº 2.257/2013, que zela pela proteção de pontos intocados de praias da Barra do Sahy e da Baleia. Como 80% do terreno do condomínio de Afif encontra-se dentro dessa nova APA, o negócio do condomínio acabou inviabilizado. Segundo estimativas da época da construção, cada casa ali seria vendida por cerca de 10 milhões de reais.