É inevitável um Natal com 190 000 mortos, mas não um verão com 250 000
A economia, o cansaço da população e a boataria estão na raiz da nova onda da Covid-19. Mas não dá para esperar 2021 para reforçar as medidas anticontágio
A média de mortes por Covid-19 entre o primeiro óbito oficialmente reconhecido, no dia 12 de março, e hoje, 21 de dezembro, é de 657 registros. A média dos últimos sete dias chegou a 766, com sólida tendência de alta.
Assim, o Brasil alcançará, possivelmente ao longo do dia de Natal, o total de 190 000 vidas perdidas para o coronavírus. Ainda não se sabe como Jair Bolsonaro e o Ministério da Saúde pretendem comemorar o feito nem como vão preparar-se para a marca dos 200 000, a ser batida em seguida.
Está claro, desde o início da crise sanitária, que o presidente acredita que, quanto mais rápida for a evolução da pandemia, mais acelerada será também a recuperação econômica, poupando-se paralelamente fortunas em pensões, aposentadorias e tratamentos de saúde – e, agora, vacinas – para os mais idosos e mais frágeis.
Mas, contra essa visível certeza do presidente, os dias entre o Natal e o Réveillon podem ser marcados por um novo e rigoroso aperto nas regras de circulação de pessoas e funcionamento de negócios na maioria dos Estados.
Olhando para os números recentes, que não deixam dúvida sobre um segundo surto violento de Sars-CoV-2 sem que o primeiro tenha nem sequer amainado de fato, percebe-se que só medidas drásticas serão capazes de evitar um verão horripilante no país, pela quantidade de pessoas que precisarão de UTIs sem que os hospitais tenham vagas. É igualmente alarmante o total de diagnósticos da doença – e sabe-se que eles são ridiculamente inferiores ao total de casos, já que só se testa quem tem sintoma e muitas pessoas realizam dois ou mais testes.
Parece óbvio que o estímulo a uma nova etapa de confinamento deveria ter começado já há algumas semanas, uma conclusão simples diante dos gráficos de mortes da pandemia, que, desde o dia 11 de novembro, revelam retomada em “V” – para usar uma imagem grata ao ministro da Economia. No ritmo atual, antes de um ano de Covid o país chegará a 250 000 mortos.
No entanto, a combinação de alguns fatores levaram os governos estaduais à inação, mesmo percebendo a gravidade do cenário. Assim como o recente período pré-eleitoral foi um momento de efervescência na circulação do vírus, com consequente aumento da contaminação e das mortes, esta fase de compras natalinas, viagens e confraternizações terá uma fatura a ser paga no início de janeiro.
Contam-se entre esses elementos a pressão econômica, um cansaço natural da população em relação às medidas preventivas e perspectivas irrealistas quanto a medicamentos preventivos, vacinação e efeitos dela no bloqueio da epidemia.
Como a pandemia cria uma situação irônica na qual toda a prevenção parecerá ter sido mais inútil à medida que dê bons resultados, governadores e prefeitos não se sentiram politicamente seguros para restringir de novo mais duramente e a tempo a rotina dos eleitores.
Temiam que, se a Covid cedesse, como era de se esperar a partir de endurecimento nas atitudes anticontágio, viriam a ser denunciados por um suposto exagero. Diante do risco, optaram claramente por empurrar o problema para depois do Natal.
A situação na Europa, mesmo com o início da vacinação, indica, ao contrário, que nenhum cuidado é exagerado. Na Itália, os óbitos dos últimos 30 dias já ultrapassaram os números acumulados no pior momento do primeiro semestre. A Alemanha migrou do sucesso inicial para o recorde europeu de mortes num único dia nesse repique de infecções. A Inglaterra vive um jamais imaginado lockdown natalino e vai sendo posta em quarentena por todo o mundo – com exceção de EUA e Brasil, por enquanto – depois de descobrir uma variante viral 70% mais transmissível que a original.
No capítulo do relaxamento por parte da população quanto às medidas de controle da disseminação do vírus, também observado na Europa na véspera desse reagravamento do quadro, juntam-se a proliferação de eventos inseguros, incluindo baladas clandestinas e confraternizações entre familiares e grupos de amigos; a autoindulgência da corridinha ao shopping para as compras de fim de ano; e o estúpido comportamento de risco estimulado pela divulgação da ivermectina e de outros elixires milagrosos.
“Eu tomo desde maio”, comunicou recentemente aos amigos o integrante de um grupo de WhatsApp que está firmemente enquadrado na comunidade de maior risco. “Não estou trancafiado”, adicionou, deixando claro que, não só acredita num produto que não está suficientemente testado, como também se expõe a situações de provável contágio e estimula os conhecidos a fazer o mesmo.
Evidentemente, o indivíduo tem todo o direito de crer no que quiser e tomar o medicamento que desejar, especialmente se tiver um médico respaldando a decisão, ainda que sem base científica. O problema, porém, torna-se agravante epidêmico, próximo da ação criminosa, quando as recomendações migram para as redes sociais. Há dezenas de profissionais de saúde repassando o vídeo do depoimento do médico americano Pierre Kory em defesa da substância. Mas também há casos de médicos e outros adeptos da ivermectina que foram parar na UTI, vitimados pela Covid-19.
A conclusão natural é que, fora da vacinação, que ainda demora e terá de superar o boicote do presidente, a má vontade do Ministério da Saúde e a boataria irresponsável sobre efeitos colaterais ou acerca do imaginário RNA digitalmente detectável a partir de antenas 5G, sobram apenas o distanciamento social e as medidas de profilaxia recomendadas há nove meses.
Máscaras no pescoço, esportes coletivos nas praias e nos parques, transporte público superlotado, estabelecimento que mede a temperatura dos frequentadores com funcionários que nem olham o resultado da medição ou nem sabem o que fazer se encontrarem temperatura acima da normal, ambulantes oferecendo mercadorias e vírus pela janela dos automóveis, famílias inteiras voando rumo às férias e até feirantes despejando perdigotos sobre seus produtos compõem uma quadro de sinais preocupantes.
Como sempre, o produto oficial dessa situação, traduzido em mais mortes, será alcançado entre os menos favorecidos, que têm menos acesso à saúde de qualidade e estarão ainda mais pressionados à exposição ao contágio na medida em que se reduz a abrangência e os valores dos auxílios de emergência.
Só a retomada firme das campanhas oficiais e o retorno de medidas duras de contenção da circulação podem produzir algum efeito – e isso deveria estar acontecendo desde muitas semanas antes do nosso Natal dos 190 000.
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*Artigo editado dia 23 de dezembro às 8h40 para inclusão de crase em “às férias”.