As cidades brasileiras no mapa-múndi
Ensaísta Davi Lago mostra que a urbanização contemporânea é difusa e palco do inesperado, como atestam a explosão no Líbano e a disseminação da Covid-19
Qual o lugar do Brasil na história recente das cidades? De acordo com o urbanista italiano Bernardo Secchi, em sua obra A cidade do século vinte, o Brasil se destacou em duas frentes. A primeira com o processo de concentração demográfica na cidade de São Paulo. Nos anos de 1900, Manhatan e Chicago, com seus arranha-céus e extraordinária densidade, se tornaram ícones da cidade do chamado “século americano”, ocupando o espaço que Paris ocupou no século dezenove. Contudo, nos anos 1990, o ícone da cidade vertical altamente povoada se deslocou para cidades como Tóquio, Hong Kong, Xangai e São Paulo. A segunda frente de destaque é a participação nas utopias de reinvenção da cidade com a construção de Brasília. O pensamento utópico, entendido como esforço extremo da imaginação, encontrou seu vértice em cidades como Chandigarh (1952), Islamabad (1959) e na capital brasileira (1957).
Neste início de século 21, as cidades seguem sua história. São novos desafios: o que se teme é a fuga da vida social, a perda de um sentido comum, do sentido de pertencer a uma comunidade, um lugar. A cidade contemporânea é difusa, confusa, palco do inesperado como atesta a explosão do porto de Beirute, no Líbano, e a disseminação veloz da Covid-19. O planeta caminha para a impressionante marca dos 10 bilhões de habitantes em 2070 – vale destacar, daqui apenas 50 anos. O Brasil é chave neste processo: é a nação com maior taxa de crescimento urbano nos últimos cem anos. Qual é nossa utopia urbana? Qual será a contribuição do Brasil neste século?
Hoje, a participação do Brasil na vanguarda do desenvolvimento urbano está muito aquém de seu potencial. Temos capital humano, recursos energéticos, produção agrícola suficientes para resolvermos problemas elementares como a universalização do saneamento básico. A conurbação entre as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro gerou a primeira megalópole brasileira, que abrange a Baixada Santista, Campinas, Vale do Paraíba. Região com força indiscutível, pode assumir protagonismo internacional compatível com sua força econômica se superar suas sucessivas más administrações. Mas, muito além do eixo Rio-SP, existe potencial imenso em todas capitais estaduais. O Brasil é um continente cheio de possibilidades e boas surpresas. Manaus tem os atributos naturais para liderar a agenda ambiental no mundo. O eixo Recife-Fortaleza pode levar a economia criativa brasileira a outro patamar, aperfeiçoando a infraestrutura para eventos globais e turismo de negócios. No Centro-Oeste emerge Anápolis como potência farmacêutica e uma das cidades mais competitivas do Brasil. No Sul, o setor vitivinícola pulsa na Serra Gaúcha com impressionante espaço para crescer ainda mais. Desenvolver as cidades brasileiras é tarefa de todos nós. Todos e todas podem contribuir. Neste ano difícil, os brasileiros terão oportunidade de sinalizar nas urnas seus desejos, interesses, reivindicações no tocante às suas cidades.
Retomando as palavras de Oscar Wilde, “um mapa-múndi que não inclua Utopia não merece nem mesmo um olhar”. Uma utopia urbana não é uma previsão sobre o futuro, nem uma evasão da realidade presente, mas uma comparação crítica entre o momento atual e as possibilidades abertas para a cidade. A utopia sempre encontra resistências e inércias da parte dos acomodados, indiferentes e alienados dos dramas enfrentados por seus concidadãos. Contudo, as cidades brasileiras podem muito mais. Somos capazes de fazer algo melhor do que expandir desordenadamente a malha urbana. Como diz o cantor e compositor Marcos Almeida, podemos tecer o futuro na esperança.
* Davi Lago é pesquisador do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo