Veio o Natal e, como em todos os anos, a aventura de Ebenezer Scrooge escrita por Charles Dickens volta à mente. Principalmente num momento de tanta miséria, desigualdade e crueldade à nossa volta. Se os fantasmas do passado, presente e futuro visitassem nossa versão tropical de Scrooge, como seria o desfecho?
Nunca saberemos, mas chegou na minha caixa de correio uma carta apócrifa que brinca com essa hipótese. Aí vai.
“Para começar a história, o Coronel Ostra estava morto. Tão morto quanto uma pedra. Capitão Bozonezer sabia disso? Claro que sabia. Capitão Bozonezer tinha sido sócio de Coronel Ostra, e há anos lembrava de sua morte quando chegava o Natal. O antigo parceiro havia falecido na data natalina e este era o sétimo ano desde o ocorrido.
Capitão Bozonezer continuou usando o nome do antigo sócio no escritório e ficava até feliz quando alguém o confundia com Ostra. Havia aprendido muitos métodos de seus negócios com ele.
Bozonezer era um tipo grosseiro, boquirroto e dado às violências – verbais e físicas. Orgulhava-se da carapaça de abutre, mas tinha um ego tão cego quanto seu coração. Sua frieza não deixava o corpo nem quando a boca entortava num esgar que ele ousava chamar de sorriso. Bozonezer, apesar de frágil, também se considerava atlético. Fazia um tipo diferente de exercício, que ele mesmo havia inventado, chamado de ‘flexão de pescoço’, uma espécie de dança da lacraia manca que mexia apenas uma pequena parte do corpo, mais precisamente do gogó para cima. Era um método que resumia perfeitamente quase todas as suas ações na vida: o uso excessivo de movimento em contraponto à falta de resultados.
Aquele Natal era mais um que Bozonezer passaria sozinho, solitário em seu mundo de paranóias peculiares. Mesmo cercado de gente, parecia estar sempre brigando com a própria sombra. E todos desviavam do caminho vendo tamanha perturbação, mas quem por ventura acabasse ficando na frente era logo espanado ou coisa pior.
Na volta para casa daquele ano, foi assim mais uma vez. Bozonezer seguiu o trajeto rotineiro até seu palácio, depois de maltratar subalternos e desdenhar de miseráveis, chamando aos esfomeados de vagabundos, e chegou em casa pronto para uma rodada de pão com leite condensado e filé com ketchup.
Antes de entrar, porém, se deparou com o horripilante fantasma do coronel Ostra. O fiapo de gente, se é que o foi um dia, era agora uma sombra, um sibilo corpóreo, envolto em correntes, fios elétricos e instrumentos de tortura. A cada passo que dava, infligia a si mesmo dores colossais acionando os equipamentos.
Capitão Bozonezer, acostumado a lamber as botas do coronel, logo se abaixou e tentou ajudar com toda a subserviência possível, mas nada que fizesse aliviava o sofrimento de Ostra.
Os uivos do coronel iam longe, até que cessaram e o fantasma se dirigiu ao subalterno vivo:
– Isso é o resultado das minhas ações na Terra. Essa desgraça toda é minha sina por séculos a frente, e não há ação que eu possa fazer agora para diminuir a dor que causei e ignorei. Você está cavando a mesma cova, mas ainda pode ter outra chance.
Assustado, o capitão não quis acreditar no destino terrível, mas foi convencido pelo coronel de que era verdade. Sua única chance de escapar seria receber três espíritos que viriam nos dias seguintes.
Bozonezer tentou se safar, esbravejou como de costume, mas a fala gritando logo foi abafada pelos uivos fantasmagóricos do além. Não tinha para onde correr.
E assim foi.
Na madrugada seguinte, um vento gelado varou sua espinha, o tempo parou e surgiu à sua frente uma nova aparição. Dessa vez, o fantasma não era de nenhum conhecido. A figura se apresentou como o fantasma dos natais passados. Queria levá-lo a uma visita.
Em segundos, foram sugados pela janela e se viram em um corredor de hospital. A cena era triste, dura e desalentadora. Todos os leitos tomados, macas estendidas pelos corredores, corpos sendo levados em sacos fúnebres aos montes, enquanto a equipe médica do hospital se esfalfava para dar conta. Famílias usavam máscaras na recepção, mas não podiam entrar para ver seus entes queridos. A noite natalina tinha o calor do verão brasileiro, mas a frieza da morte pairava no ar. Na pequena TV da sala de espera, vinham imagens do noticiário. O fantasma chamou a atenção de Capitão Bozonezer para a tela e ele viu a si mesmo na exibição televisiva. Falava com gestos debochados, com ironia na voz, e terminou a fala esbravejando diante de um repórter: ‘Tem medo de quê? Enfrenta! Tem que deixar de ser um país de maricas!’
Todos os presentes na sala de espera trocaram olhares mistos, entre a raiva e a profunda angústia. Um senhor mais agitado gritou para a recepcionista do hospital que desligasse a TV. Não aguentava mais aquele homem. Uma menina mais jovem soltou alguns xingamentos, enquanto uma mãe com o rosto marcado por lágrimas deixou mais algumas escorrerem.
O fantasma olhou para Capitão Bozonezer, mas não conseguiu notar nenhum esboço de remorso. Sua feição continuava com a mesma frieza de sempre.
A volta foi num tom pesado. Ao menos para o fantasma, que mesmo conhecendo tudo aquilo, continuava se sensibilizando. Já o capitão parecia nem ter ido ao passeio. Estava entediado e irritado. Tentou dar um empurrão no fantasma na hora da despedida e sequer demonstrou qualquer sinal de culpa. Disse apenas que aquilo era fraqueza dos que não corriam atrás de verdade. Um bando de vagabundos. E as doenças eram fruto da falta de esportes. Com seu histórico de atleta, não tinha do que reclamar.
O fantasma o encarou uma última vez antes de ir embora, questionando o capitão com o olhar, mas a resposta foi dura mais uma vez: ‘E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?’. Havia uma lista de coisas a fazer, um relatório enorme em cima da mesa, enumerando ações, medidas políticas, científicas e econômicas que poderiam ser tomadas, mas o capitão amassou os papéis e jogou no lixo. Bateu a porta sem cerimônias.
O fantasma baixou a cabeça e foi embora lastimando.
Bozonezer deitou tranquilo em sua cama e roncou a noite toda. Não o sono dos justos, mas o vazio dos desalmados.
Na manhã seguinte, enquanto espalhava farelos de pão por toda sala de seu palácio, sentiu um novo vento correr a espinha. Um segundo fantasma brilhava à sua frente. Agora o do Natal presente. Queria levá-lo para ver a situação além dos cercadinhos que o acompanhavam no poder. O capitão tentou argumentar, chegou a sacar um revólver, mas alma penada não toma tiro, e o fantasma do natal presente o carregou na marra.
Passaram primeiro por um viaduto da cidade, onde dezenas de pessoas se revezavam para lavar-se numa poça imunda. Em seguida, o grupo de miseráveis sentou em roda, e dividiu um pedaço de pão bolorento com um resto de osso. A fome gritava em seus rostos, mas o capitão Bozonezer só tinha voz para esbravejar com o fantasma, gritando aos quatro ventos que estavam armando para ele, que era uma patifaria aquilo, que lugar de vagabundo é na cadeia. Logo em seguida, um dos esfomeados caiu de lado, foi cercado pelos companheiros, todos tentaram ajudar, mas já era tarde. Morrera ali mesmo, com o estômago seco e os ossos saltando da pele esgarçada pela desnutrição.
Uma ambulância chegou e levou o corpo. O fantasma carregou o capitão para dentro do veículo e lá puderam ouvir o diálogo dos dois socorristas, que traziam vincos profundos nos rostos, marcados pelo trabalho duro e pela angústia da tristeza vista um dia atrás do outro. O primeiro deles, mais jovem, falava com raiva:
– O cara vem falar que ninguém passa fome no Brasil? Olhaí a ‘mentira’. Tem coragem de chamar de idiota quem fala em comprar feijão pra ficar defendendo comprar fuzil… às vezes dá vontade de largar tudo e ir embora desse país. Ninguém merece uma desgraça dessa.
O mais velho, com o olhar cansado, apenas sacodia a cabeça:
– Uma hora a conta chega pra ele.
– E a conta gigante que ele tá deixando pra trás? – Questionou de volta o mais jovem, que ficou sem resposta.
Na volta, o fantasma do natal presente tentou ouvir do capitão o que ele achou da cena, mas Bozonezer foi curto e grosso: ‘Quer que eu faça o quê? Não sou coveiro, não’.
O fantasma do presente saiu entristecido, jamais vira um ser tão convicto da própria crueldade. Deu uma última olhada da porta para o Capitão, ao que recebeu mais um rosnado: ‘Vão ficar chorando até quando?.
No terceiro dia, a sombra que chegou foi o fantasma do natal futuro. A visita aconteceu no exato momento em que o relógio marcou 20:23.
A essa altura, Capitão Bozonezer já estava mais do que entediado com os fantasmas. Tentou agredir a assombração como pode, insistiu que não estava nem aí para umas correntezinhas depois da morte, mas foi levado mesmo assim.
Quando percebeu, estava no meio de uma praça lotada de gente. Todos cantavam, gritavam e comemoravam, como se fosse a vitória de uma Copa do Mundo. Um telão foi instalado na praça e a multidão assistia a uma cena que era transmitida em tempo real.
O fantasma puxou Bozonezer e finalmente deu para ver a imagem. Era o próprio capitão passando na tela, algemado, sendo levado por policiais. Um espetáculo inusitado, mas que fazia a diversão de milhares de pessoas espalhadas por ali.
Quando o telão mostrou um agente colocando o capitão no camburão e fechando a porta, a praça foi à loucura. Fogos de artifício, cantorias e urros de alegria se espalharam pela cidade. Uma comemoração jamais vista daquele tamanho.
Bozonezer se virou para questionar o fantasma, mas tudo começou a girar à sua volta e de repente se viu cercado por três paredes cinzas e uma grade enferrujada. Era uma cela. Tentou sair dali, mas estava preso.
Numa pequena TV instalada fora da cela, ele ouviu no noticiário a sentença de sua própria prisão: pena máxima. O apresentador do telejornal informou ainda que além disso o capitão também havia sofrido uma condenação do tribunal de Haia, por crimes contra a humanidade.
Nessa hora, Bozonezer se virou novamente para o fantasma, irritado, mandando acabar com aquele passeio. Não queria saber mais daquela idiotice. O fantasma sorriu, acenou com a mão e emitiu seu primeiro som na noite: ‘Tchau, querido’. Virou as costas e foi embora.
Nesse momento, Capitão Bozonezer esboçou uma reação de compaixão pela primeira vez. Só conseguia tê-la consigo mesmo. Com a cara entre as grades, estava se borrando de medo. Finalmente teria que recolher sua barbárie à prisão que merecia e precisaria encarar a própria insignificância sem grito imbecil que desse jeito. Por décadas.
Ao se dar conta disso, Capitão Bozonezer se encostou desolado numa parede suja da cela e percebeu três palavrinhas riscadas no chão. Aproximou-se atento para ver o que estava escrito e deu de cara com sua maior sentença: ‘acabou a mamata’.”
Esse texto é uma ficção e qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.
Mas não custa sonhar.
Feliz Natal e um próspero Ano Novo.
* Daniel Fraiha é jornalista e roteirista, Mestre em Criação e Produção de Conteúdos Digitais pela UFRJ e sócio da Projéteis – Criação e Roteiro