O Supremo Tribunal Federal (STF) entrou em recesso nesta quarta-feira, 20, mas já sinalizou que vai iniciar o próximo ano judiciário julgando uma importante questão, que pode afetar a vida de milhões de brasileiros. Trata-se dos embargos de declaração opostos pelo governo federal, por meio da Advocacia-Geral da União (AGU), para que a Corte reveja o entendimento a respeito da construção de aterros sanitários.
Em 2018, o STF considerou inconstitucional a gestão de resíduos em áreas de proteção ambiental. Na prática, houve a equiparação dos aterros sanitários – que são projetos de tratamento de resíduos – aos lixões, formas inadequadas de disposição final deste material no solo, sem qualquer técnica ou medida de controle.
O ministro Luís Roberto Barroso, que havia pedido vista, devolveu o caso para julgamento na semana passada e já sinalizou que o processo deve entrar na pauta do plenário virtual no dia 2 de fevereiro de 2024, logo após o Supremo retomar os trabalhos.
Os defensores de que a decisão seja revertida alegam que aterros sanitários são parte essencial do saneamento básico, direito previsto na Constituição Federal. Portanto, a segura gestão de resíduos é de responsabilidade do poder público, sendo necessário o reconhecimento da atividade como de utilidade pública e interesse social, o que permite a construção dessas estruturas em áreas de preservação permanente (APP).
O engenheiro e consultor do Banco Mundial Luis Sérgio Kaimoto trabalha com manejo de resíduos sólidos e faz um alerta sobre a questão. “O Brasil pode sofrer um colapso no sistema de saneamento brasileiro, inviabilizar a gestão de resíduos sólidos e favorecer a proliferação desenfreada dos lixões”, afirma. De acordo com o especialista, a função dos aterros sanitários vai muito além do simples descarte adequado do lixo. “Em muitas ocasiões, a construção de um aterro sanitário contribui para a melhora do meio ambiente, da qualidade da água e do solo na região”, completou, citando os aterros dos Bandeirantes, em São Paulo, e de Belford Roxo, no Rio de Janeiro, como exemplos de benefício ambiental. Ambos funcionam em áreas de APPs e melhoraram a qualidade da água e do solo nos locais.
Caso a decisão da Corte seja mantida, ao menos 10 capitais brasileiras devem ser diretamente afetadas e correm risco de ter a destinação adequada do lixo de mais de 23 milhões de pessoas suspensa. Além das questões relativas à logística de remover o lixo dos atuais locais, não há área disponível suficiente para a transferência de mais de 279 milhões de toneladas de resíduos dispostos atualmente nesses aterros. A inviabilidade se dá porque não existem grandes áreas para a instalação de empreendimento como esses, principalmente nas capitais e regiões metropolitanas.
São Paulo, a maior cidade do país, será a principal afetada, uma vez que o aterro atende a capital e municípios vizinhos. Outras cidades da lista que podem ser diretamente atingidas são Salvador, Recife, Belo Horizonte, Aracajú, Porto Alegre, Curitiba, Vitória, Florianópolis e Teresina, o que pode acarretar um destino incerto para cerca de 33,3 milhões de toneladas produzidas a cada ano.
O processo
Os embargos de declaração em julgamento foram opostos pela AGU e pelo Partido Progressista (PP) para que a declaração de nulidade não abarque as atividades de gestão de resíduos, uma vez que os aterros sanitários são integrantes do saneamento básico. Desta forma, pediram que a restrição se limite ao lixão, nocivo ao meio ambiente, mantendo válida a definição que engloba os instrumentos da Política Nacional de Resíduos Sólidos.
Até o momento, seis ministros já votaram. Único a votar pelo provimento dos embargos, Gilmar Mendes qualificou a decisão do STF como “grave” e afirmou que os embargos de declaração seriam uma oportunidade única de “correção e redimensionamento” do que foi decidido. Em seu voto, o ministro demonstrou preocupação com a repercussão da declaração de inconstitucionalidade da expressão “gestão de resíduos”, que impediria a atividade de forma indiscriminada em APPs.
Segundo Gilmar Mendes, “é inequívoco que a corrente formada pela maioria dos ministros considerou a expressão ‘gestão de resíduos’ sinônimo de lixão, a significar o descarte incorreto de resíduos sólidos”. “Mas, ao reputá-la inconstitucional, bloqueou iniciativas ambientalmente corretas, como a dos aterros sanitários, essenciais para a erradicação dos lixões e para o integral implemento do saneamento básico”, ponderou.
Gilmar Mendes afirmou que o acórdão acabou por traçar caminho dissonante da própria Política Nacional de Resíduos Sólidos, que não considera a gestão de resíduos mecanismo nocivo ao meio ambiente. “Haverá situações em que a execução de obra de gestão de resíduos sólidos será melhor alocada em área de proteção ambiental, sem que com isso haja decréscimo da proteção ambiental. Para controlar essas situações em concreto, há a exigência do licenciamento ambiental, no bojo do qual serão examinadas e ponderadas as circunstâncias de instalação da infraestrutura em determinado local.”
Ainda faltam votar os ministros Luís Roberto Barroso, que havia pedido vista do processo, Dias Toffoli, Nunes Marques, André Mendonça e Cristiano Zanin.
Panorama do setor
De acordo com dados do Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil divulgados na semana passada pela Abrema (Associação Brasileira de Resíduos e Meio Ambiente), 40% do lixo produzido no país é enviado para locais inadequados e ainda existem cerca de 3 mil lixões espalhados pelo país. No total, são mais de 33,3 milhões de toneladas de lixo despejadas inadequadamente no meio ambiente ao ano.
Caso o STF opte por decretar a inconstitucionalidade e consequente encerramento dos aterros sanitários em APPs, a situação pode piorar com o aumento dos lixões e atraso na meta de universalização do saneamento no país. “O Brasil está avançando com o saneamento e temos metas ambiciosas. Deveríamos fechar todos os lixões já no próximo ano, mas ainda existem cerca de 3 mil espalhados pelo país. Estamos distantes do saneamento universal e o tratamento adequado dos resíduos sólidos é um dos pilares. O aterro sanitário é a melhor e mais viável forma para tratamento do lixo no país. Precisamos ver isso como um investimento no futuro. Tenho confiança de que a Justiça irá se sensibilizar com a atual situação e tomar a melhor decisão para o cidadão, o meio ambiente e para o país”, afirma Pedro Maranhão, presidente da Abrema.
Atualmente, os aterros sanitários atendem 61% da população brasileira, mas a desigualdade regional ainda é um problema. Nas regiões Norte e Nordeste, apenas 37% do lixo é direcionado para os aterros sanitários, enquanto no Sul e Sudeste este percentual é de mais de 70%.