Jessé Souza é um intelectual que não dispensa provocações. Professor convidado da Universidade de Sorbonne, Paris I, e pesquisador sênior da Universidade Humboldt, em Berlim, o sociólogo de 62 anos possui uma extensa obra, com a publicação de mais de 30 livros e centenas de ensaios e artigos acadêmicos em vários idiomas. Crítico do triunvirato Sérgio Buarque de Holanda – Gilberto Freyre – Raymundo Faoro, Souza é uma das vozes mais lúcidas no debate público brasileiro. “Quando falo de Sérgio Buarque de Holanda e, em partes – ambiguamente – em Gilberto Freyre, Raymundo Faoro e Roberto DaMatta, apenas me refiro aos maiores intelectuais que desenvolvem um determinado tipo de pensamento, que julgo ser nocivo”, disse à coluna. Na tentativa de oferecer uma “reinterpretação da sociedade brasileira visando a reconstrução da identidade nacional”, Jessé dedicou parte do seu trabalho acadêmico, investigando as raízes da nossa subalternidade. Em obras como “A elite do atraso”, “A tolice da inteligência brasileira” e “A ralé brasileira”, o seu pensamento corre solto confrontando a elite.
Em entrevista à coluna, Jessé Souza expressou sua alegria com o novo time de ministros do atual governo e ressaltou a importância de Flávio Dino no primeiro escalão. “O Flávio Dino como ministro da Justiça é o homem certo no lugar certo. Somente alguém como ele pode ajudar nessa questão da reconstrução do Estado Democrático de Direito e desarticular toda essa cultura golpista, armamentista e antidemocrática, erigida pelo ex-presidente miliciano”, disse. Quanto aos principais desafios de Lula em sua gestão à frente do governo federal, Souza vê o racismo como o mais premente: “O seu maior desafio será o enfrentamento do racismo multidimensional, o qual se manifesta de diversas maneiras, como racismo racial, de classe e de gênero”.
Leia a entrevista a seguir:
Rodolfo Capler – O senhor acredita em Deus?
Jessé Souza – Eu não acredito em Deus, embora gostaria de ter esse tipo de crença. No entanto, creio que há algum desígnio na existência.
Rodolfo Capler – Como o senhor enxerga a relação dos evangélicos brasileiros com as estruturas de poder?
Jessé Souza – Vejo com muita preocupação. Eu fiz um livro, cujo título é “Os batalhadores: nova classe média ou nova classe trabalhadora? (2012)”. Para a realização desta obra eu mantive contato com vários pastores. É importante dizer que muitos deles são pessoas decentes, ou seja, estavam ali para ajudar as pessoas e cobravam alguma coisa pelos trabalhos que ofertavam, como quase todas as pessoas costumam fazer. Nessa análise dos evangélicos é necessário entender o porquê de eles crescerem tanto. Eles crescem porque metade da população brasileira se encontra literalmente preterida e esquecida. Uma coisa que quase ninguém considera é que essas pessoas são constantemente humilhadas. A experiência da humilhação, sem dúvida, é uma forma de miséria. Ao contrário do que, comumente, pensamos, a miséria não apenas diz respeito a não ter o que comer, não ter o que vestir ou carecer de um teto. Um indivíduo constantemente humilhado está submetido à miséria. Como resposta a essa humilhação do povo, as denominações evangélicas agem. Elas chegam para aquele indivíduo abandonado e humilhado e dizem a ele: “Você não é um lixo”. Eu já vi um pastor falar isso para uma pessoa. Quando isso acontece, um impacto muito grande é gerado na vida de quem está humilhado. Por essa razão, sustento a tese de que a necessidade de reconhecimento social é a necessidade humana mais profunda. Não é economia ou dinheiro. A maior necessidade das pessoas é a de serem respeitadas. Ora, as igrejas evangélicas suprem essa carência na vida de milhões de pessoas humilhadas no Brasil. Como elas atendem a essa demanda, elas cobram alguma coisa. Infelizmente, a cobrança desse preço é terrível, pois, como os indivíduos são supridos em sua necessidade mais básica, eles farão de tudo para continuar recebendo isso. Não só irão pagar um valor financeiro, como estarão dispostos a votar no candidato político sugerido pelo pastor. Esse processo é extremamente perigoso, porquanto, implica uma dependência afetiva dos fiéis em relação aos seus líderes e às estruturas religiosas das quais fazem parte. O resultado disso é dominação política e econômica. Vimos isso na trajetória de Bolsonaro. A maioria dos votos que ele recebeu veio do segmento evangélico, que de alguma maneira foi manipulado para que isso acontecesse. Com Bolsonaro no poder, muitas lideranças evangélicas iriam ganhar muito mais dinheiro. Por isso, temos de ficar atentos em relação a esse processo de instrumentalização da fé evangélica para fins políticos, pois, isso constitui uma agressão ao Estado Democrático de Direito.
Rodolfo Capler – Como a esquerda brasileira pode furar a bolha da militância e se comunicar efetivamente com o segmento evangélico?
Jessé Souza – Esta é a questão de 1 milhão de dólares (risos). Penso que, precisamos, antes tudo, compreender o está por trás do boom evangélico. A maioria dos sociólogos e estudiosos não percebe o tema do reconhecimento social como o fator mais importante na interpretação do fenômeno. Esse tema é pouco conhecido e pesquisado, e raramente considerado nas análises sobre os evangélicos. Eu comecei a tocar nessa temática em meu livro “Como o racismo criou o Brasil (2021)”. Nos próximos anos pretendo pesquisar isso com mais profundidade. O estudo deste tema é condição sine qua non para que a esquerda se conecte mais profundamente com as populações pobres, incluindo as evangélicas.
Rodolfo Capler – Qual é a sua avaliação sobre os primeiros movimentos do novo governo Lula? O senhor gostou das escolhas dos ministros?
Jessé Souza – Sim, eu gostei. Há mulheres integrando a equipe, o que é ótimo, visto que o Brasil é um país machista. Me agradou muito a escolha do Camilo Santana, que é uma pessoa extremamente competente e inteligente. O Flávio Dino, que eu já admirava, também foi uma excelente escolha. Se compararmos esses novos quadros com os do governo anterior, a sensação é de que se está em outro planeta (risos).
Rodolfo Capler – O senhor acrescentaria outros nomes?
Jessé Souza – Eu não tive nenhuma percepção negativa em relação a esses nomes. Destaco a minha grande empolgação com a trinca ministerial que incluí as áreas que considerado serem as mais importantes, a saber, educação, saúde e justiça. O Flávio Dino como ministro da Justiça é o homem certo no lugar certo. Somente alguém como ele pode ajudar nessa questão da reconstrução do Estado Democrático de Direito e desarticular toda essa cultura golpista, armamentista e antidemocrática, erigida pelo ex-presidente miliciano.
Rodolfo Capler – O senhor e um dos principais críticos do triunvirato Sérgio Buarque de Holanda – Gilberto Freyre – Raymundo Faoro. Na sua opinião, qual foi o grande desserviço que estes pensadores legaram ao Brasil?
Jessé Souza – Quando falo de Sérgio Buarque de Holanda e, em partes – ambiguamente – em Gilberto Freyre, Raymundo Faoro e Roberto DaMatta, apenas me refiro aos maiores intelectuais que desenvolvem um determinado tipo de pensamento, que julgo ser nocivo. O grande problema é que a maioria dos intelectuais não percebe os níveis de abstração que envolve uma teoria. Muitos escrevem sobre uma área específica e imaginam que estão investigando a sociedade como um todo. Não é assim. O nível mais alto da produção intelectual é o nível mais abstrato, que questiona a identidade duma sociedade e como ela se comporta. Aos especialistas que lidarão com questões tópicas, essas indagações já estão respondidas. Quando eu digo que Sérgio Buarque é o pai do pensamento brasileiro moderno é porque ele está na cabeça de 99,9% dos nossos intelectuais. Assim, atacar suas ideias é atacar a tolice da elite brasileira. O conceito do “homem cordial”, do Sérgio Buarque de Holanda, transmite a ideia de que o brasileiro é burro, feio, animalesco, canalha, corrupto e inconfiável. Essa tese, por exemplo, foi recebida pela intelectualidade brasileira como a demonstração do espírito crítico de Sérgio Buarque. No final das contas, esse tipo de conceituação introjeta nas consciências das pessoas a síndrome do vira-lata, que está entranhada na carne de todos os brasileiros. Esse pensamento está ligado a questão da corrupção. Ou seja, você culpa a corrupção, mas não aquela praticada pela elite econômica. A título de exemplo, temos uma dívida pública que não é auditada. Se não é auditada, é porque há corrupção. Isso é óbvio. Embora a elite brasileira não paga impostos, pois, sonega-os no exterior, isso não é visto como corrupção. Melhor dizendo, o entendimento do que é corrupção sempre estará associado aos representantes do povo, ao Estado e a política, que, no fundo, não passam de espaços apropriados pelo mercado. É sempre os agentes do mercado que cooptam o espaço da política, como ficou claro no caso da JBS. Ora, Sérgio Buarque inviabiliza esse tipo de assalto elitista. Visto que o objetivo de uma teoria é esclarecer para os leigos o porquê das coisas acontecerem como acontecem, qual foi o tipo de esclarecimento viabilizado por Sérgio Buarque? Ele disseminou a ideia de que o Brasil é um país pobre e atrasado, porque o povo é corrupto e elege ladrões. Para Sérgio Buarque, a corrupção se encontra exclusivamente no Estado e na política, o que é um verdadeiro engodo. Como resposta a isso, eu desenvolvi o meu trabalho, o qual é uma maneira de reinterpretar a sociedade brasileira, visando a reconstrução da identidade nacional.
Rodolfo Capler – O bolsonarismo radical (dos quartéis) seria uma continuidade das reflexões de Sérgio Buarque de Holanda?
Jessé Souza – Sim, com certeza. Sérgio Buarque é ensinado em todas as universidades brasileiras e as ideias dele são repercutidas pela imprensa. No Brasil, interpretamos a sociedade pela ótica de Sérgio Buarque, pois, somos pensados por ideias pré-concebidas. Um exemplo disso é o modo como Bolsonaro é compreendido no Brasil. Ele é miliciano, participou de rachadinhas e comprou 51 imóveis com dinheiro vivo. Mesmo assim, não é visto como corrupto. Isso acontece, porque, em parte, a imprensa alcunhou Lula como ladrão, dando vasão às reflexões de Sérgio Buarque. Essas ideias estão presentes em todos os lugares e serão manifestas no comportamento dos indivíduos e dos grupos sociais.
Rodolfo Capler – Em inúmeras ocasiões o senhor nominou jocosamente boa parte da esquerda brasileira de “esquerda Oslo”, criticando-a por se preocupar excessivamente com pautas identitárias em detrimento de questões sociais estruturais como a fome, o desemprego e a evasão escolar. O senhor ainda acredita que a esquerda no Brasil se encontra alienada dos reais problemas da nação?
Rodolfo Capler – Não acredito que a esquerda esteja desconectada dos reais problemas do povo. Na verdade, a minha crítica é direcionada a uma certa forma de reivindicação identitária que se associa a uma percepção individual e meritocrática. Ora, as reivindicações individuais não implicam em nenhuma transformação social. Ademais, esse tipo de reivindicação não passa de uma estratégia do capitalismo financeiro internacional para fazer colar a ideia de que o mercado tem algum tipo de compromisso com a justiça social, o que, decerto, não é verdade. As grandes empresas dizem que querem dar oportunidade de trabalho para mulheres e negros. É evidente que mulheres e negros necessitam de espaço no mercado de trabalho, porém, isso deve ocorrer de modo universalista, por intermédio da implementação de políticas públicas, como as cotas sociais e raciais, por exemplo.
Rodolfo Capler – O senhor defende que um dos principais problemas do Brasil é a falta de reflexão sobre sua gênese escravista. De que modo esse esquecimento (ou negligência) das nossas origens históricas nos afeta no plano das relações cotidianas?
Jessé Souza – No meu trabalho eu tento mostrar como essa herança escravista se manifesta hoje. Como o nosso comportamento é determinado por ideias – quer a gente saiba disso ou não – para mudar o comportamento de alguém, é necessário, antes, mudar a sua ideia sobre a realidade. Isso se aplica à sociedade. Veja que a nossa herança escravocrata nunca foi criticada (com a exceção de Getúlio Vargas, que utilizou algumas ideias de Gilberto Freyre, à época). A ausência de crítica à herança escravocrata continua a vigorar no Brasil até hoje. Inclusive o PT, quando esteve no poder, nunca fez essa crítica, precisando, urgentemente, fazê-lo agora com o novo governo. Penso que o tema da legitimidade de uma sociedade é o mais importante para compreendermos o impacto desse problema. Como as pessoas aceitam serem saqueadas e dominas por 0,01% da população? Essa é a grande questão. O que fiz em meu trabalho foi demonstrar a influência das ideias de Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro na postura de subserviência do povo brasileiro em relação às elites. As ideias desses pensadores ainda são predominantes em todos os setores da sociedade, incluindo a universidade e a mídia – inclusive, a esquerda adora Sérgio Buarque e Raymundo Faoro. O único cara que, de fato, percebeu o impacto dessas influências foi Florestan Fernandes, que infelizmente acabou não pontuando algumas coisas, as quais eu me dediquei a pontuar em meu trabalho. Tanto o Florestan, quanto eu apontamos que a dominação da elite sobre o povo se dá quando você retira o tema da escravidão e em seu lugar coloca uma suposta herança de corrupção legada por Portugal como o grande aspecto de explicação do Brasil. Ou seja, a escravidão se tornou algo secundário entre os intelectuais e na esfera pública. É importante destacar que a esfera pública se alimenta dos intelectuais. São eles que criam as ideias e influenciam o restante da sociedade. Reitero mais uma vez: as pessoas não formam ideias da própria cabeça; as ideias formam as pessoas. Enfim, acho necessário percebermos que o conjunto de ideias que legitimam o Brasil contemporâneo serve exatamente para secundarizar e obscurecer a influência da escravidão. Em meu livro “A ralé brasileira (2009)”, eu destaco que, sob formas modernas, esse tipo de ideia produz novos escravos. Isto é, temos pessoas abandonadas, sem nenhuma ajuda, vivendo situações deploráveis. Esses indivíduos nascem em famílias desestruturadas e, conhecem, não apenas uma miséria econômica, mas também moral. Essa é a reprodução da escravidão, uma vez que essas pessoas precisam, além de tudo, serem humilhadas. Se não são humilhadas, não são escravizadas, visto que a humilhação é o principal componente da escravização. Na própria constituição das classes sociais, vê-se a humilhação presente, de modo que a escravidão continua presente no cotidiano brasileiro.
Rodolfo Capler – Em seu livro “Como o racismo criou o Brasil (2021)” o senhor sustenta que conceitos em voga hoje no debate público, como “representatividade”, “lugar de fala” e afins, não passam de uma fraude neoliberal. O senhor pode explicar o que intenta dizer com isso?
Jessé Souza – Mais uma vez quero ressaltar o seguinte: você não pode, individualmente, combater a pobreza e a desigualdade social. A Nancy Fraser, que é uma excelente pensadora feminista, denuncia esse processo. Segundo Fraser, esses conceitos privilegiam 1% das mulheres e 1% dos negros, os quais terão acessos às vagas de emprego antes ocupadas por homens brancos. O perigo disso é que, a partir daí, se constrói a impressão de que se está promovendo justiça social. Ou seja, uma minoria de mulheres e negros ascenderão à essas posições sociais, em detrimento, duma grande maioria que não possui estímulos sociais para que lá esteja um dia. Isso é de uma perversidade gigantesca, pois como ficam os restantes 99% não contemplados por esse tipo de discurso? Na verdade, esses conceitos funcionam como meritocracia. Isto é, com base nisso, um homem branco com metade dos seus funcionários negros, transmitirá a seguinte mensagem à ralé que não conseguiu as vagas: “Olha, há negros aqui, ocupando posições na minha empresa. Vocês não conseguiram porque são um bando de preguiçosos”. Estimular a meritocracia num país desigual como o Brasil é pura perversidade, portanto, o que temos que fazer num país como o nosso é redimir essa classe de novos escravos e dar a ela a chance de que seus membros possam se qualificar e se tornar pessoas autônomas. Esse é o grande desafio que temos pela frente. Por essa razão, o tema da representatividade, pensado como ascensão social, é um engodo neoliberal.
Rodolfo Capler – Na sua opinião, qual será o maior desafio a ser enfrentado pelo presidente Lula nos próximos 4 anos?
Jessé Souza – O seu maior desafio será o enfrentamento do racismo multidimensional, o qual se manifesta de diversas maneiras, como racismo racial, de classe e de gênero. Penso que o presidente Lula também terá a árdua tarefa de trabalhar para a construção duma nova ideia sobre o Brasil, ou seja, duma nova narrativa sobre o que é o país. Espero que Lula compreenda que o país carece disso. Ele é inteligente e tem ao seu lado muita gente capacitada que pode dar uma resposta a esses desafios.
* Rodolfo Capler é teólogo, autor de “O país dos evangélicos” (Fonte Editorial, 2022) e pesquisador do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP