Retrocessos evidentes no combate à corrupção
O Brasil obtém queda significativa no Índice de Capacidade de Combate à Corrupção desde 2019, colocando o país em um ponto de inflexão, analisa Daniel Lança
O combate à corrupção no Brasil se encontra num ponto de inflexão; o cenário pós-Lava-Jato é desesperançoso e em evidente retrocesso. É o que aponta o Índice de Capacidade de Combate à Corrupção (CCC), ranking que mensura a capacidade dos países da América Latina de detectar, punir e prevenir a corrupção, liderado pela Americas Society/Council of the Americas (AS/COA) e pela consultoria global Control Risks.
Diferentemente do Índice de Percepção da Corrupção, produzido anualmente pela Transparência Internacional, o Índice CCC avalia e classifica países com base na eficiência com que podem prevenir, detectar e punir a corrupção a partir de 14 indicadores, dos quais se incluem a independência das instituições jurídicas, a força do jornalismo investigativo e o nível de recursos disponíveis para combater crimes de colarinho branco, por exemplo.
Se por um lado, o Índice CCC 2021 apresenta declínio de quase todos os países latino-americanos quanto à eficiência e independência das agências de combate à corrupção, há exceções notáveis, nomeadamente Uruguai, Chile e Costa Rica, que se mostraram capazes de robustecer a qualidade da democracia e a força das instituições políticas mesmo diante dos desafios de combater a corrupção no cenário pandêmico da COVID-19.
Quanto ao Brasil, ocupamos o trágico 6º lugar dentre 15 países latino-americanos com a nota 5,07. O país obteve a maior queda nas pontuações, regredindo de 5,52 em 2020 e de 6,14 em 2019, quando ocupávamos o 2º lugar do ranking. As pontuações são divididas em três grandes temas: sociedade civil e mídia; democracia e instituições políticas e capacidade legal.
As razões do retrocesso do Brasil no combate à corrupção são apontadas no próprio relatório. Na temática capacidade legal, houve declínios na independência das agências anticorrupção (como o COAF), do Ministério Público Federal (MPF) e da Polícia Federal (PF), refletidos, sobretudo, na nomeação pelo governo federal de pessoas percebidas como menos independentes para o comando de tais órgãos. Segundo o relatório, as investigações sobre corrupção transnacional também perderam ímpeto, em especial com o desmantelamento da Operação Lava-Jato em fevereiro deste ano.
Para o próximo ano, o Índice CCC aponta áreas críticas a serem monitoradas, tais como o comportamento de líderes de órgãos de combate à corrupção, como a PF e o MPF, que podem continuar a sofrer pressão para proteger o Presidente Bolsonaro e seu círculo íntimo de investigações de corrupção, além do apontamento do próximo Ministro do Supremo Tribunal Federal. Ainda, o relatório apresenta preocupação quanto às decisões judiciais que comprometam investigações anticorrupção, como a Lava-Jato, com possibilidade de anular ou invalidar decisões já adjudicadas desde 2014.
Já escrevi outras vezes que combate à corrupção representa não apenas o compromisso em não roubar, mas também em não deixar roubar e em punir efetivamente quem rouba. Isso passa, na prática, pelo fortalecimento das instituições e das leis, inclusive das agências anticorrupção, e pelo respeito à democracia, ao papel dos órgãos constitucionais de freios e contrapesos, à imprensa livre e à sociedade civil organizada.
Acontece que o Brasil vai, atualmente, pelo caminho oposto. O argumento da ausência de notícias de corrupção no governo federal – o que não é verdade – como ostenta o Presidente da República, não é um prognóstico da ausência de suborno, mas do enfraquecimento generalizado dos órgãos de controle. Aliás, notícias de investigação por corrupção no governo federal existem e são graves, desde desvios no Ministério da Saúde durante a pandemia até esquemas de suborno no extravio de madeira ilegal no IBAMA e no Ministério do Meio Ambiente. O próprio Bolsonaro – e seu ciclo íntimo – são investigados por rachadinha, um tipo rasteiro de corrupção.
O Índice CCC é apenas uma das várias pesquisas que aponta para o mesmo cenário: vivemos um evidente retrocesso no combate à corrupção no Brasil. As razões são sabidas e os antídotos conhecidos. Sem uma liderança ética e capaz de produzir as reformas necessárias, seja para atualizar leis ou para consolidar instituições fortes na prevenção, detecção e combate à corrupção, estaremos fadados a continuar regredindo.
Daniel Lança é advogado, Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa e sócio da SG Compliance. É Professor convidado da Fundação Dom Cabral (FDC) e foi um dos especialistas a escrever as Novas Medidas contra a Corrupção (FGV/Transparência Internacional)