Que mistérios tem Clarice?, quis saber Caetano Veloso na música de 1968, muitas vezes lembrada quando se fala de Clarice Lispector. A resposta é uma porção, com certeza, mas o seu trunfo como escritora não foi desvendá-los, e sim ampliá-los. Para o seu biógrafo, Benjamin Moser, que acaba de lançar no Brasil Todos os Contos (Rocco), reunião de textos breves já editada no exterior, Clarice soube encontrar a surpresa no cotidiano e iluminar o sagrado da vida – talvez uma das maiores contribuições da literatura às artes em geral. À humanidade.
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“A obra dela nos enriquece: não porque nos ajuda a fugir da banalidade da vida, mas porque nos permite ver, dentro dessa própria banalidade, a beleza e a divindade que fica dentro de nós”, diz Moser, que conheceu Clarice quase por acaso na faculdade e por ela aprendeu português e passou a frequentar o Brasil.
O americano, que agora se divide entre a luta para preservar o imóvel em que Clarice viveu em Recife, na infância, e a construção da biografia de outra poderosa das letras, a americana Susan Sontag, falou ao VEJA Meus Livros sobre o seu trabalho junto a Todos os Contos, a obra de Clarice e a sua relação quase mística com a escritora.
O que uma leitura linear da produção de contos de Clarice Lispector revela sobre a mulher e a escritora? Diria menos que revela alguma coisa sobre a mulher e a escritora: revela a mulher e a escritora, de forma espantosa e esplendorosa. Porque de ponto de vista histórica ou biográfica, vemos toda a carreira de Clarice passar, desde os 19 anos, quando começa a esboçar seus primeiros contos, até os rascunhos que ela deixa incompletos ao morrer, quase quarenta anos depois. Então vemos ela tentando, começando — e depois ficando mais segura, mais experimental — e depois, com maiores experimentos, desfazendo, destecendo, desescrevendo, o que viera antes. E no processo, ficamos conhecendo essa genial mulher que anda pelo mundo, aprendendo a viver.
Na sua opinião, Clarice era uma virtuose ainda maior nos contos do que nos romances? Eu não penso nestes termos. Para mim, Clarice era uma virtuose em tudo. Não que tudo o que fazia fosse a mesma coisa ou do mesmo nível, mas não é o caso para ninguém. O que nos interessa é este espírito, em todas as formas pelas quais se revelou.
Em que medida ser mulher colaborou e prejudicou a Clarice escritora? Ser mulher é inseparável de ser Clarice, como seria o caso de qualquer mulher. Mas como descrevo no prefácio, ela era uma pioneira não só no Brasil mas no mundo: estamos diante da primeira mulher de que se tem registro que escreveu, durante toda a sua vida, de todas as fases de uma mulher de classe média. É tão comum hoje lermos literatura “feminina” que temos tendência a esquecer o revolucionário que isso era, e não faz tanto tempo. Fiquei muito feliz quando descobri este fato. Pensei que não podia enaltecer ainda mais o nome da Clarice, e aí veio mais uma coisa maravilhosa que fez.
Por que, na sua opinião, demoramos tanto para ter um volume que reunisse todos os contos de Clarice Lispector? E por que esse volume foi lançado antes fora do Brasil? Eu queria fazer um volume só para reunir toda essa parte da obra da Clarice. Como sou editor dela em inglês, fizemos assim: não dava para publicar em volumes pequenos como os publicou Clarice no Brasil. E depois do enorme sucesso do livro nos Estados Unidos, chegando, por exemplo, como primeiro livro brasileiro à capa do New York Times Book Review, virando um verdadeiro evento no mundo cultural americano, o Paulo, filho da Clarice, e a Rocco, editora dela no Brasil, acharam legal fazermos o volume no Brasil também. Porque mesmo para quem conhece estes contos todos, é uma outra impressão quando se tem tudo reunido.
Alguns leitores parecem ter medo de Clarice. Por que isso acontece? Ela faz pensar em questões que as pessoas não querem encarar? Se eu pensar em quantos anos já trabalhei em prol de Clarice, é para ter medo mesmo! Acho difícil responder para outras pessoas, mas ela realmente nos confronta com aspetos da vida, da nossa vida, que nem sempre temos vontade de entreolhar. Ela nos leva muito profundamente para dentro e a confrontação às vezes fica penosa. Mas ao mesmo tempo a obra dela nos enriquece: não porque nos ajuda a fugir da banalidade da vida, mas porque nos permite ver, dentro dessa própria banalidade, a beleza e a divindade que fica dentro de nós.
O interesse por Clarice no exterior abriu caminho para outros escritores brasileiros? Isso era uma grande esperança quando comecei este projeto, há mais de uma década. Porque a literatura do Brasil não tinha uma cara, e muito menos uma tão bela e extraordinária quanto a da Clarice. E a partir do interesse que ela tem despertado, estão ressurgindo traduções de muitos autores novos e antigos. Estou muito animado, por exemplo, de ver que o grande romance do grande amigo e inspiração de Clarice, Lúcio Cardoso, está aparecendo em inglês neste ano: Crónica da Casa Assassinada.
Clarice vai ganhar um museu no Recife? Tudo está realmente no início, mas a ideia é de não só preservar um monumento de importância nacional (que está sem telhado, caindo literalmente aos pedaços) mas também de investir em um modelo de urbanismo que mostre uma alternativa à destruição das cidades históricas. Quero utilizar essa oportunidade de mostrar que as cidades históricas do Brasil poderiam ter outro destino além de espigão, estacionamento, shopping – e que não é a despeito delas que o Brasil pode se modernizar, mas graças a elas.