Ricardo Piglia é um dos maiores escritores da Argentina, onde voltou a morar em setembro, quando se aposentou da Universidade de Princeton (EUA), e agora trabalha em um livro de contos, Histórias Pessoais. É sobre esse projeto e o último romance que escreveu, Alvo Noturno, lançado neste ano no país pela Companhia das Letras, que Piglia fala abaixo. Em passagem por São Paulo, o escritor conversou por cerca de uma hora com a VEJA Meus Livros. Na primeira parte da entrevista, logo acima, ele fala das transformações na literatura que vê a internet provocar, da sua relação com outras formas criação, como artes plásticas e arquitetura, e do bom momento que vive a TV americana, vista por ele de perto nos anos em que lecionou nos EUA.
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Em Alvo Noturno, Emilio Renzi é um jornalista que investiga um crime. O jornalismo policial é o mais próximo da literatura? É um gênero que admiro, o do jornalismo policial. É feito por gente que investiga, que vai ao lugar onde as coisas acontecem, que tem relação com os dois lados, policiais e criminosos. Renzi começou como crítico literário do jornal onde trabalha e, quando jovem, teve de cobrir um crime, coisa de que gostou. Em Alvo Noturno, ele se demora no povoado onde ocorreu o crime porque se enamora de uma das gêmeas ligadas ao morto. Seu papel aqui é o de observador, de alguém que vem de fora e vê as coisas com distância.
Muita gente ficou em dúvida se devia chamar Alvo Noturno de livro policial ou não. Como o senhor o define? Eu tampouco sei. O livro começa com características do gênero policial. Há um comissário que investiga o crime. Mas o relato muda a sequência clássica do gênero. Porque eu gosto muito de pensar no romance policial depois do final. Às vezes, acabo de ler um policial e sinto vontade de que ele tivesse continuidade. Parece que a história termina no ponto em que fica interessante. O interessante não são apenas as causas do crime, mas também suas consequências. Em Alvo Noturno, procuro avançar com a realidade logo após o crime.
Essa realidade que se passa logo após o crime mostra uma Argentina muito parecida com o Brasil. Um país racista, em que campo e cidade constituem realidades bastante distintas, com diferentes tipos de relações sociais. Os argentinos são de fato racistas? Não é algo que se percebe claramente como em países com uma tradição africana muito forte, como os Estados Unidos ou quem sabe o Brasil. Na Argentina, a tradição africana se foi dissolvendo, mas restou um racismo social, com aversão a determinada cor de pele. Não há um racismo explícito, mas uma discriminação latente muito forte. No romance, a chegada de um mulato a um povoado argentino produz um efeito ao mesmo tempo de aversão e atração. Até porque é um mulato com dinheiro, que chega dos Estados Unidos com muito prestígio. Assim, pude trabalhar essa coisa bastante presente na América Latina, as pequenas comunidades em busca da industrialização e do progresso e o mundo rural como um lugar que dificulta esse tipo de acontecimento.
No Brasil, se fala que quem enriquece embranquece. Na Argentina se dá o mesmo? Sempre me intrigou muito a capacidade de diferenciar a cor da pele no Caribe. Há como trinta formas diferentes de cor, do branco ao negro, matizes e matizes, que têm a ver com onde está a raiz genealógica. Eles têm com a cor da pele a mesma atitude que os esquimós com a neve (diz-se que os esquimós têm duzentas formas de nomear brancos). Essa ideia do Caribe estava na minha mente, sempre me interessei pelo Caribe como mundo narrativo e imaginário. Um lugar de encontro entre Europa e América, onde se deu o primeiro encontro com os colonizadores espanhóis, que ao chegar acharam que estavam no paraíso. E o conflito entre os impérios e as zonas mais ricas das colônias, que cediam suas riquezas à Europa, dava espaço para a atuação de piratas ingleses e franceses. Então, há hoje um Caribe holandês, um Caribe francês, é uma região com muitas línguas, tradição africana fortíssima e riqueza literária. É como um laboratório de questões sociais.
É verdade que o personagem Luca Belladona é inspirado em um primo seu? Sim. Um primo de que eu gostava muito e já está morto. O romance reproduz em linhas gerais a vida do meu primo. Ele era muito criativo, um inventor. Criou uma fábrica que começou a crescer e a ter problemas, inclusive familiares. Quando a fábrica praticamente para de funcionar, ele não se resigna, se tranca lá, obstinado com a salvação e a volta à boa forma da empresa. Eu o visitava quando pequeno, ele era mais velho e criava brinquedos. Quando ele passou a ter problemas, começou a ter uma relação conflitiva com a realidade e a me visitar, porque precisava falar da situação. E eu sempre pensei em usar essa história, agora saiu. Luca Belladona tem efetivamente muitas conexões com o meu primo. Uma das características do personagem que parecem inventadas, seu fascínio por Jung, por exemplo, é algo que meu primo tinha. Meu primo era obcecado pela ideia jungiana de que os sonhos são contínuos, têm uma lógica entre si, e anotava os seus sonhos nas paredes. Os elementos que parecem mais fantasiosos no livro são às vezes os mais reais – a realidade tem às vezes umas coisas que não se podem imaginar.
Alvo Noturno traz de volta Emilio Renzi. E ele está novamente jovem. Por que ele nunca envelhece? Às vezes, penso que o melhor é mantê-lo sempre jovem adulto, trabalhar com ele nessa faixa de idade, mas às vezes penso que seria melhor dar a ele um trato realista, deixar que os anos passem. Mas também me dei conta de que os personagens de ficção que nos encantam são jovens – salvo Rei Lear, digamos. É um momento rico, uma fase de transição, em que não se é jovem nem velho.
Um período rico do ponto de vista narrativo. Eu acho que sim, porque há muitos conflitos e há alternativas. Não se está frente a um mundo já vivido, é preciso tomar decisões.
Tanto Alvo Noturno como Respiração Artificial se passam nos anos 1970, época de ditadura. Por que esse período é recorrente na sua obra? Escolhi este ano porque era um ano com fronteira. A realidade política poderia tomar uma direção ou outra – se discutia então se Perón voltaria ou não. Na vida real, a experiência vivida pelo meu primo se passaria um pouco depois. Mas a decisão sobre a época não é apenas uma decisão sobre a intriga, mas também sobre o relato, mas sobre as limitações, as contingências da época.
O japonês de Alvo Noturno me lembrou o de Cidade Ausente: ambos trabalhavam em um hotel. (Risos.) Sim, sim, é como um duplo. Mas é uma coincidência, na realidade: algo em que eu não penso quando estou escrevendo um romance. Dinheiro Queimado também tem uma semelhança com Alvo Noturno: dois personagens que parecem gêmeos. São como obsessões minhas, de que não tenho consciência. E novamente a questão racial: no Brasil, há uma migração japonesa muito forte, na Argentina, os japoneses ou descendentes são poucos, e sofrem um racismo soft.
No ano passado, o senhor disse que tinha planos de fazer uma biografia de Renzi. Ainda tem esses planos? Essa ideia sempre vem à cabeça. Ou uma biografia ou um diário – porque Renzi tem um diário. Mas agora estou escrevendo contos. Em alguns ele aparece, em outros, não. Estou num processo de trabalho que envolve várias histórias que vou anotando ao longo do tempo e num momento me sento para escrever. A princípio, o livro se chama Histórias Pessoais, e tem a ver com a discussão que tivemos sobre conceito. A questão aqui é saber o que são as histórias pessoais – se as que nós vivemos ou as que estão em volta de nós e nos afetam. Dessas últimas, tenho uma porção de histórias para contar.
O senhor trouxe esse livro a São Paulo, está trabalhando nele aqui? Não trabalho quando viajo. Há uma contradição entre viajar e escrever, entre viver e escrever. Para trabalhar mais, preciso viajar menos (risos).
Saiu este ano no Brasil Borges, uma Vida, a biografia escrita pelo britânico Edwin Williamson, lançada no ano passado nos EUA. O senhor chegou a lê-la? Sim, e achei um pouco ingênua, por ter uma ideia um pouco esquemática da experiência emocional de Borges e também por ler a sua obra de uma maneira mecânica, tentando achar conexões com a sua vida. As biografias sempre têm elementos que são interessantes de ver, mas o modo como o biógrafo imagina a vida da personagem que está narrando influi na qualidade.
O senhor já pensou em escrever uma autobiografia? Não (risos). Gostaria que pensassem que a minha vida é a de Renzi (risos). Mas me parece que a vida não é o central, numa biografia. Conta a relação da personagem com a época em que vive e com o que faz, que pode ser arte ou qualquer outra experiência. Isso é algo que me interessa na narração: como escrever histórias de pessoas que vão além da nossa experiência média? Não contar as mesmas histórias que vivemos, contar histórias que tenham outro horizonte, que sejam um pouco mais amplas. Por isso, me atraem personagens como o meu primo, que estão fora da experiência mais imediata.