Nesta quarta, 19 de janeiro, William Wilson completaria 198 anos. Aliás, William Wilson e seu sósia de mesmo nome, que como ele é personagem e batiza o conto de Edgard Allan Poe sobre a experiência fantástica de se ver refletido em outra pessoa. Apropriado, esmiuçado e reinventado em teses acadêmicas e em textos de romancistas do porte do russo Fiódor Dostoiévski e do argentino Ricardo Piglia, William Wilson (1839), o conto, é considerado um dos textos mais importantes sobre a figura do duplo na literatura.
“Mas, decerto, se fôssemos irmãos, teríamos sido gêmeos: pouco depois de ter deixado a escola do Doutor Bransby soube, por acaso, que o meu homônimo nascera em 19 de janeiro de 1813 – coincidência bastante notável, sendo esse dia, precisamente, o do meu nascimento”, escreve o narrador de William Wilson, enquanto lembra que conheceu seu sósia ainda criança, na escola, e que a partir daí seria copiado e perseguido por ele.
“Wilson dava-me a réplica com uma perfeita imitação de mim mesmo – gestos e palavras – e representava admiravelmente o seu papel. Meu traje era coisa fácil de copiar, meu andar, minha atitude geral, ele fizera seus sem dificuldade e, a despeito de seu defeito constitutivo, nem mesmo minha voz lhe tinha escapado”, continua o narrador, que revela, em seguida, não ter sido imitado pelo sósia em todos os detalhes. O duplo teria um tom de voz e posturas éticas diferentes das suas, não sentiria prazer em dominar ou trapacear – e poderia, dependendo da leitura, ser entendido como o complemento ou a consciência do narrador.
O narrador, aliás, não dá ao leitor o seu verdadeiro nome, que seria também o de seu duplo, por vergonha da história que está contando. Em vez disso, numa brincadeira de Poe, ele adota um pseudônimo que é formado por dois anagramas dotados de significados: William pode ser Will i am (Serei eu?, em português) e Wilson, Wil’ son (Filho de Wil, também em tradução livro).
Explorado de diversas maneiras, com personagens semelhantes, idênticos ou proporcionalmente inversos um ao outro, o tema do duplo tem longa trajetória na literatura. Datado de 1839, William Wilson, o conto, não é o primeiro a abordar o tema do duplo, que, de acordo com Freud, nos acompanha desde os primórdios da psique humana. Ele seria a parte de nós mesmos que estranhamos e relutamos a reconhecer.
Seus primeiros registros, de fato, remetem à antiguidade, ao mito em que Zeus toma a forma de Anfitrião para se deitar com a esposa do grego, argumento retomado no século XVII por Molière, na peça Amphitryon, e aos gêmeos bíblicos Esaú e Jacó, iguais mas diferentes, recriados por Machado de Assis no século XVIII. O próprio William Wilson chegou aos leitores depois de O Elixir do Diabo, texto do alemão E. T. A. Hoffmann de 1815, e antes de O Duplo, de Dostoiévski, de 1846, e da clássica Comédia dos Erros, de Shakespeare, de fins do século XVI.
O argentino Ricardo Piglia, que retomou William Wilson no romance A Cidade Ausente, onde o conto é recriado por uma máquina fazedora de textos como Stephen Stevensen, considera o alter-ego Emilio Renzi o seu duplo literário. “Ele tem semelhanças comigo, mas, principalmente, vive uma vida paralela, que eu não pude viver”, diz, lembrando que o papel do duplo, além de ampliar a leitura de quem se depara com uma obra literária, é o de enlarguecer a experiência do autor.
A vida que Piglia vive através de Renzi vai ser, aliás, experimentada em detalhes. Está nos planos do escritor argentino uma biografia para o personagem – leia mais aqui.
Maria Carolina Maia