A coisa está feia: nem bruxarias da mulher seguram Ortega
Rosario Murillo manda em tudo; o marido, o ex-guerrilheiro que virou presidente, fala como se estivesse drogado e age como se fosse ditador
Eles foram jovens, bem apresentáveis, idealistas. Lutavam contra uma ditadura de manual, daquelas que ganham nome próprio, o somozismo.
Hoje, Daniel Ortega e Rosario Murillo, marido e mulher, co-presidentes da Nicarágua como já chegaram a dizer, viraram uma versão farsesca dos monstros que combatiam.
A história está cheia de casos similares, revolucionários cheios de projetos e sonhos que, no poder, agem do mesmo modo dos antecessores caídos.
Mas raramente se encontra um caso em que a expressão “loucos pelo poder” pode ser levada tão ao pé da letra. Nem na Romênia de Nicolae e Elena Ceausescu, julgados por genocídio e fuzilados no dia de Natal de 1989, a loucura chegou ao ponto do que se vê com o casal 20 da Nicarágua.
Para os mais temerosos, Rosario fez um pacto com o rabudo ao se colocar contra a própria filha quando ela revelou anos de violência sexual sofridos nas mãos de Ortega, seu padrasto.
Os menos supersticiosos tendem a enxergar um pacto político. Enquanto Ortega tocava o mundo real – ideologia castrista, simpatias bolivarianas, acordos de armamentos com os russos, pacto com os chineses para um futuro canal concorrente do Panamá e negócios milionários para a família -, Rosario cuidava do surreal.
Escritora e poeta que estudou na Inglaterra e na Suíça, ela deu de se vestir como uma Frida Kahlo sandinista, venerar o guru indiano Sai Baba (o mesmo de Nicolás Maduro) e proclamar conhecimentos xamânicos, seja lá o que isso signifique. Pela frente, é chamada pelo apelido, Chayo. Pelas costas, La Chamuca, a bruxa.
Para garantir o trabalho dos espíritos, o casal Ortega conta com a proteção das “turbas”, a versão nicaraguense dos “coletivos” da Venezuela – por que não copiar uma ideia horrível de um país fracassado?
Foram as ”turbas”, civis recrutados nas periferias, colocados em motos, encapuçados e armados, que acirraram a atual crise da Venezuela, com mais de 40 mortos em protestos e um estado geral de revolta – de verdade, não o falso levante popular que propagam existir no Brasil por causa do apenado de Curitiba.
Diante do problema habitual de países que não precisam equilibrar contas, Ortega despejou de uma vez só uma reforma da previdência daquelas.
Aumento de 6,25% para 7% da contribuição previdenciária dos trabalhadores registrados e de 19% para 22,5% da parte dos empregadores. O que mais provocou revolta foi o desconto de 5% nas pensões dos aposentados.
Conseguiu a proeza de unir desde a extrema-esquerda até o patronato nos protestos. Anulou tudo, mas a fúria nacional, agravada por atos de violência pavorosos como a morte a bala de um jornalista transmitida em rede social, continuou.
Até a igreja católica, que tinha se transformado na Nicarágua num braço do sandinismo e depois do orteguismo, caiu fora.
“O presidente é um cínico sem consciência”, disse ao jornal espanhol El País a freira Giselle Gómez, que participou das manifestações com outras religiosas. “Eu vivi a revolução sandinista e apostei neles. Por isso, fico indignada.”
Além do cinismo, da corrupção e do autoritarismo, Ortega às vezes parece estar sob a influência de substâncias que alteram o comportamento. Alguns de seus discursos chapados viraram piada, embora no momento ninguém esteja achando graça em nada.
Só para dar uma ideia da desimportância econômica da Nicarágua: 25% do PIB decorrem das remessas enviadas pela população de imigrantes nos Estados Unidos.
Mas a importância simbólica tem um certo peso. O grotesco casal virou a imagem do oportunismo e da devastação moral da esquerda latino-americana que chegou ao poder.
Os que não viram isso antes são os mesmos que gostariam que nós fôssemos a Nicarágua, ou a Venezuela, amanhã.