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Ainda por cima, incompetentes: o mistério dos espiões russos

Fotografados e cronometrados, os agentes que tentaram matar um ex-colega na Inglaterra abrem mais teorias conspiratórias. E ainda tem a conexão Trump

Por Vilma Gryzinski 6 set 2018, 19h55
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  • O caso do assassinato fracassado de Sergei Skripal, contaminado com o mais secreto e devastador agente químico do arsenal russo, é uma caixona de surpresas.

    O atentado, praticamente equivalente a um ato de guerra, voltou a ter grande destaque depois que o governo britânico divulgou o levantamento detalhado de como foi praticado.

    No país com o maior número de câmeras de segurança do mundo, os dois russos que foram a Salisbury, no interior da Inglaterra, para aspergir o mortífero Novichok na maçaneta da casa de Skripal, praticamente dão risada na cara dos investigadores.

    Certamente sabiam que estavam sendo fotografados e seriam identificados. Entraram no país com passaportes e vistos em nome de Alexander Petrov e Ruslan Boshirov, obviamente uma fachada criada pelo GRU, o serviço militar de espionagem no qual Skripal chegou a coronel aposentado, antes de ser exposto como colaborador do serviço secreto britânico.

    Petrov e Boshirov, seja lá qual forem seus nomes verdadeiros, nunca mais vão sair das fronteiras da Rússia, sob risco de prisão. Também não devem ter se tornado muito populares com seus chefes: Skripal e a filha, Yulia, uma vítima acidental, escaparam do que seria a morte certa, como em tantos outros casos precedentes.

    Como sicários profissionais, fracassaram espetacularmente.

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    A única vítima letal acabou sendo Dawn Sturgess, moradora de uma cidadezinha vizinha de Salisbury.

    Quase quatro meses depois do atentado contra Skripal, o namorado dela achou numa lata de lixo do parque de Salisbury uma embalagem do perfume Premier Jour, da grife Nina Ricci. Deu-lhe de presente.

    A caixa era metalizada, em tons de cobre, com o desenho estilizado de uma gardênia, exatamente igual à original. O frasco tinha um aplicador estranho, do tipo parecido com o usado em lubrificantes.

    Dawn passou o perfume nos pulsos e, num ato clássico, esfregou-os. Uma semana depois estava morta, devastada pelo contato muito forte com a pele e, possivelmente, pela saúde fragilizada pelas drogas e o alcoolismo. Como Skripal e a filha, o namorado sobreviveu, apesar de sequelas.

    Grandes mestres

    Os assassinos incompetentes, uma mácula na longa história de crimes políticos da Rússia (czarista, comunista e putinista), também abriram um espetacular ninho de vespas conspiratórias.

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    Só para dar uma ideia: Skripal, aparentemente recolhido a uma merecida e modestamente recompensada aposentadoria, depois de ser trocado por espiões russos, continuava ativo.

    E não em qualquer atividade. Era um dos contatos de Christopher Steele, o ex-chefe da espionagem britânica em Moscou transformado em investigador particular.

    E não em qualquer investigador. Sua empresa, a Orbis, fez o notório dossiê sobre os contatos escusos, reais ou inventados, de Donald Trump com elementos do governo russo.

    Sem falar no episódio da “chuva de ouro”, a heterodoxa modalidade sexual envolvendo duas prostitutas numa suíte de luxo em Moscou.

    Steele prestava serviços pagos pelo Partido Democrata para beneficiar a candidatura de Hillary Clinton.

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    Tinha também uma vasta rede de contatos com os serviços de inteligência dos Estados Unidos. Mesmo dispensado como informante pago do FBI, por ter falado com jornalistas simpáticos à causa antitrumpista, continuou em contato “informal” com um dos mais qualificados funcionários do Departamento de Justiça, Bruce Ohr.

    Surpresa, surpresa: a mulher de Ohr, uma acadêmica especialista em assuntos russos, era contratada justamente pela Fusion GPS, outra empresa dedicada ao “levantamento de dados”, atividade também conhecida como fábrica de dossiês, responsável por requisitar os serviços de Steele.

    O caso todo está no cerne do mais intrigante enigma ainda em desdobramento nos Estados Unidos: os envolvidos no dossiê, sua divulgação e investigação, são agentes do bem que tomaram medidas extremas para detonar um presidente irremediavelmente comprometido com o maior inimigo dos Estados Unidos?

    Ou, convictos da justiça de sua causa, tornaram-se agentes dedicados a usar métodos ilícitos para sabotar um presidente sacramentado pelo povo americano?

    Ou, ainda, uma terceira hipótese: foram todos, a turma de Trump e a turma contra Trump, maquiavelicamente manipulados pelos grandes mestres das armações ilimitadas, conduzidos por um ex-agente da KGB chamado Vladimir Putin?

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    Morcego negro

    A conexão entre Skripal e Steele deu origem a duas teorias conspiratórias diametralmente opostas — cada uma mais maluca, e justamente por isso instigante, que a outra?

    Teoria número 1: Skripal estava perto de comprometer a funesta aliança Trump-Putin. Os segredos que guardava definitivamente acabariam com Trump. Putin correu o risco de uma operação de emergência para calar a boca do traidor, que merecia ser morto de qualquer maneira.

    Seus agentes fracassaram espetacularmente e ainda aumentaram gravemente o nível de animosidade entre a aliança ocidental e a Rússia putinista.

    Teoria número 2: Skripal estava perto de comprometer a funesta aliança dos serviços secretos da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos para corromper a vontade do povo americano, elegendo uma presidente que daria imunidade a atos traiçoeiros do governo anterior, do qual tinha sido secretária de Estado.

    O assassinato fracassado foi uma operação de “falsa bandeira”, com a vantagem adicional de impedir a prometida reaproximação do governo Trump com Moscou.

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    O nível alucinatório das teorias conflitantes reflete o estado de ânimos extremamente exaltados nos Estados Unidos. Mas tem também fundamentos no histórico de manipulações do GRU, o serviço de inteligência e de operações militares secretas que tem como símbolo um morcego negro de asas abertas sobre o globo terrestre.

    Criado por ninguém menos que Leon Trotsky quando assumiu o comando do Exército Vermelho, o GRU, hoje remodelado com uma inicial a menos (GU), embora prevaleça a denominação clássica, tem um histórico de indizíveis atrocidades a serviço do regime soviético.

    E também de golpes espetaculares, baseados na inteligência e na sofisticada capacidade de manipular informações.

    Stanislav Lunev, o militar de mais alta patente do GRU a trocar de lado e desertar, em 1992, para os Estados Unidos, onde vive sob a proteção do anonimato, deixou relatos detalhados das operações de propaganda do GRU.

    Todas as manifestações contra a guerra com o Vietnã e pelo desarmamento (falso) nos Estados Unidos e na Europa tiveram algum tipo de ingerência do GRU.

    Isso não significa que não tivessem adesão espontânea e maciçamente idealista, mas sim que a inteligência militar soviética entendia e insuflava o seu valor como instrumento para fragilizar o inimigo.

    Piranhas de aquário

    A guerra da propaganda ganhou uma dimensão fenomenal com os meios digitais e saiu — e continua saindo — do “exército virtual” do GRU a maior parte das manipulações nas redes sociais destinadas a solapar os fundamentos das sociedades ocidentais.

    A enxurrada de perfis falsos e outros truques a favor de Trump é apenas um dos aspectos da guerra digital. Existem também armadilhas infinitas contra Trump e dedicadas a insuflar a sociedade americana pelo lado da esquerda, explorando especialmente as tensões raciais.

    Jogar com a mão direita e com a esquerda é um clássico da Agitação e Propaganda desde os primórdios do comunismo.

    Viktor Suvorov, outro desertor especialmente bem informado sobre o funcionamento interno do serviço secreto militar, conta assim o que aconteceu quando tomou conhecimento do Aquário, o centro nervoso envidraçado da sede do GRU em Moscou.

    “Que tipo de peixes nadam lá?”, perguntou para seu chefe.

    “Só tem um tipo: piranhas.”

    Suvorov, pseudônimo usado em seus interessantíssimos livros (o nome real dele é Vladimir Rezun), conta que quando estava no GRU viu um filme em branco e preto mostrando o destino reservado a um coronel que havia colaborado com os britânicos — o único agente duplo com esta patente, nessa época, 1963, foi Oleg Penkovsky.

    Como castigo e aviso aos potenciais traidores, o coronel foi amarrado numa maca e queimado vivo.

    Desde que, quase inacreditavelmente, sobreviveram ao ataque com Novichok, Skripal e a filha vivem em extrema segurança, em “aparelhos” do tipo destinado a proteção de testemunhas. Ela já disse que quer voltar para a Rússia, um projeto altamente irreal. Ele talvez seja transferido para os Estados Unidos.

    Os dois passaram por traquestostomias para sobreviver ao agente tóxico que mata por paralisia do sistema respiratório. Mas ainda podem falar.

    Conspiracionistas de todo o mundo estão esperando.

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