Durante algumas décadas, direita e esquerda, nos países civilizados, pareciam caminhar para uma fusão.
Dividiam-nas apenas questões clássicas, como investir mais nos menos favorecidos ou soltar a livre iniciativa – ambas com o objetivo comum de melhorar a vida dos cidadãos.
Era assim até mesmo na Espanha, onde as duas ideologias travaram uma guerra civil que vive recidivando em carne viva.
Em seus extremos, ambos mostraram o que de pior tinham a oferecer ao mundo, com o troféu indo para o vencedor, o franquismo, justamente por ter vencido.
Bom, todo mundo sabe que isso acabou por causa de uma longa lista de condições históricas que será discutida em outro espaço.
Na Espanha, primeiro renasceu a esquerda pura e dura, via o Unida Podemos, o partido do cabeludinho Pablo Iglesias.
Defensor do chavismo, para o qual prestou serviços na própria Venezuela e sabe-se lá mais onde, ele obrigou a esquerda tradicional, do PSOE, mais para social-democracia com tintas espanholas, a ir para uma nova eleição, no domingo.
Fala bem, entende de planejamento político estratégico e conseguiu o prodígio de se passar por porta-voz de todas as causas progressistas, apesar do regressismo que mata os venezuelanos de fome, sem falar em propostas completamente malucas que destruiriam a economia espanhola.
Iglesias foi absorvido pelo sistema, agora em choque com a ascensão de sua versão à direita, Santiago Abascal, líder do partido VOX.
Para a esquerda, é praticamente como se Franco tivesse reencarnado, numa versão moderna. E sob a forma de um sociólogo apaixonado pela natureza. Incluindo bonsais, cavalos e pássaros.
Dá para imaginar um feroz direitista que é ornitólogo amador?
O medo desencadeado por Abascal no campo ideológico oposto tem várias razões.
A maior delas, possivelmente, é que, num país onde todos os políticos parecem ter nascido fazendo comícios, ele não apenas fala bem, mas defende com clareza, precisão e agressividade uma plataforma de direita que ousa dizer seu nome.
MÃO DURA
As razões alheias a seu estilo ou ideologia também são poderosas.
Primeiro, o medo da imigração em massa de muçulmanos e de atentados terroristas, principalmente de marroquinos, separados da Espanha por uma fronteira seca e um braço de mar.
Segundo, o pavor existencial, sob a forma da quebra da unidade territorial e política da Espanha, provocado pela questão sem solução do separatismo na Catalunha.
Abascal, claro, prega a mão dura.
É difícil imaginar em que circunstâncias, sem ou com sangue, isso poderia funcionar.
Mas a mão mole, exercida durante os anos da primeira onda de governos do PSOE, também não funcionou.
Quando o último governo da direita tradicional, do Partido Popular – do qual Abascal saiu para formar o Vox -, deu uma endurecida, tudo já tinha desandado.
Os partidários da independência catalã fizeram um plebiscito, à revelia da constituição. Metade dos eleitores votou a favor, mas, em nome das regras mais fundamentais do estado de direito, as principais autoridades catalãs tiveram que ser enquadradas na letra da lei.
O chefe do governo fugiu e os outros responsáveis foram processados. A condenação deles desaguou no atual surto de protestos.
A tática das manifestações pacíficas, com sua indiscutível superioridade moral, vai ficando para trás e dá cada vez mais medo imaginar onde isso tudo vai acabar.
Os grandes protestos pela independência obscurecem o repúdio que o esfacelamento nacional provoca entre espanhóis em geral e, especificamente, nos que vivem na Catalunha.
Abascal é um partidário do nacionalismo espanhol sem filtros. Pode dizer que conhece o assunto por dentro.
Ele é do País Basco, onde seu avó, seu pai e ele próprio identificavam-se com a linha do que veio a ser o Partido Popular.
Sofreram ameaças e atentados do ETA, o grupo que pegou em armas e praticou barbaridades em nome da causa da independência basca.
A resistência provocada por atrocidades como os assassinatos de funcionários ou policiais levou a esquerda, na sua maioria, a romper com o ETA.
As condições na Catalunha são diferentes, mas a grande pergunta continua a ser a mesma: o que fazer quando uma pluralidade ou maioria deseja sair do país do qual faz parte e criar outro?
E o que fazer com a parte que não quer sair de jeito nenhum?
“PSICOPATAS”
Confrontos entre identidades nacionais são perigosos, ainda mais num país com a herança histórica da Espanha.
Como o assunto sempre teve que ser tratado com luvas de pelica, justamente por causa do território cinzento entre nacionalismo e franquismo, o estilo assumido e provocador de Santiago Abascal deixou o mundo político de queixo caído.
A reação do eleitorado também. Existem pesquisas mostrando que o VOX pode se tornar o terceiro partido mais votado no domingo.
O PSOE teria o maior número, de deputados,121, como aconteceu em abril, mas sem a maioria nem a aliança exigida pelo sistema parlamentarista.
O PP, segundo as pesquisas, teria uma recuperação parcial, com 99 deputados.
Em seguida, viria o partido de Abascal, com 46 eleitos – um espanto.
Num roteiro que já aconteceu em outros conhecidos países, o VOX é o partido que melhor sabe usar os recursos do mundo digital.
As declarações chocantes, ainda mais num país de altíssimo nível de correção política como a Espanha, também provocam um efeito conhecido: cobertura de alta intensidade dos meios de comunicação.
Com a intenção de denunciar, acabam fazendo publicidade grátis.
Uma amostra das frases de Abascal. Imigrantes chegam “para roubar os espanhóis, agredir os espanhóis”, deveriam ser expulsos.
“Não temos por que ser obrigados a receber nenhum tipo de imigração.”
“De onde vêm os autores dos assassinatos machistas? De que nacionalidade são? Tem alguma coisa a ver com os problemas culturais de uma parte da imigração?”
“Defendemos o casamento tradicional entre homens e mulheres.”
“Metade da população é criminalizada por seu sexo por causa das leis totalitárias da ideologia de gênero.”
“Existe uma coleção de psicopatas que nos dizem que isso não é presunto, mas porco morto. Querem tirar nosso presunto e que comamos alface como as lagartas.”
Já deu para ter uma ideia? Lembra os presidentes de dois grandes países dos Américas?
Com 43 anos, casado com uma influencer do Instagram e mais focado nas mensagens nacionais – embora de jeito nenhum domesticado -, Santiago Abascal foi, por unanimidade das pesquisas, o vencedor do único debate eleitoral do ciclo atual.
E, ainda por cima, com a legendária teimosia dos bascos.
Sem alianças, nenhum partido conseguirá governar e o impasse se reproduzirá.
Mas é garantido que, se tiver uma votação importante, Abascal não vai ficar olhando passarinhos.