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Biden e o paradoxo do poder

Eleitos por seus méritos, poderosos perdem inibições ao chegar lá

Por Vilma Gryzinski Atualizado em 4 jun 2024, 12h49 - Publicado em 12 set 2021, 08h00
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  • “Não existem governos perfeitos. Uma das maiores virtudes da democracia, no entanto, é que seus defeitos são sempre visíveis e, em processos democráticos, podem ser apontados e corrigidos.” A frase é de Harry Truman, um dos sujeitos mais humildes a se tornar presidente dos Estados Unidos. Ao vice apagado que assumiu o lugar do gigantesco Franklin Roosevelt coube uma sequência quase inacreditável de decisões, como mandar jogar duas bombas atômicas no Japão, encerrar o último capítulo da II Guerra Mundial, abraçar a política de contenção do comunismo e, por causa dela, colocar os Estados Unidos na Guerra da Coreia. Diante dessa definição tão honesta e simplória das imperfeições dos governos e do exemplo de jogo limpo deixado por Truman, seria recomendável a Joe Biden que parasse de fazer a imitação de grande líder que tem tentado emplacar e apertasse o comando de reiniciar. A oratória repetitiva, os lugares-comuns e o tom defensivo dos últimos discursos só ressaltam a limitação de seus recursos intelectuais e, contraditoriamente, a fraqueza da posição em que colocou a si mesmo ao decretar que a saída do Afeganistão deveria ser feita da maneira desastrosa como aconteceu.

    Nos momentos piores, o presidente deixou entrever reações coléricas, inconsistências morais e até indiferença pelo destino de cidadãos americanos que não foram resgatados a tempo ou mesmo indiferença pelos treze militares mortos por um homem-bomba no aeroporto de Cabul. O modo como ficou olhando o relógio a cada caixão que desembarcava contradisse dolorosamente a figura pública cujo “atributo principal é a empatia”, na definição entusiástica de seu chefe de gabinete, Ron Klain.

    “O presidente deixou entrever reações coléricas, inconsistências morais e até indiferença”

    Como um político matreiro, com quase meio século de experiência em todos os corredores do poder em Washington, que adora conversar, consolar e — na era anterior à atual — abraçar eleitores (e eleitoras), pode tomar atitudes tão prejudiciais a si mesmo? Uma das explicações é que talvez a persona pública que ele construiu não coincida com a personalidade revelada em particular, de temperamento irritadiço, obsessão por detalhes e inapetência para assumir a responsabilidade pelos erros.

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    Outra explicação poderia ser o “paradoxo do poder”, a hipótese formulada por Dacher Keltner, professor de psicologia de Berkeley, sobre o efeito desinibidor do poder. “Incontáveis estudos mostram que escolhemos os indivíduos mais modestos e generosos para nos liderar”, diz um de seus adeptos, o historiador holandês Rutger Bregman. “No entanto, assim que eles chegam ao topo, em geral o poder lhes sobe à cabeça — e boa sorte para se livrar deles depois disso.” Segundo Bregman, os detentores do poder agem como se fossem portadores de um distúrbio chamado sociopatia adquirida e são “mais impulsivos, autocentrados, negligentes, grosseiros e arrogantes que a média”. Também têm menos vergonha, “não manifestando aquele fenômeno de expressão facial que torna os homens únicos entre os primatas”. Não ficam vermelhos. Eleito por causa da imagem de político correto e equilibrado, sem a estridência de Trump, Biden certamente não é o único a perder a imagem que o levou à Casa Branca — e a capacidade de corar de vergonha.

    Publicado em VEJA de 15 de setembro de 2021, edição nº 2755

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