A história não registra nada parecido com o que está acontecendo na Venezuela. Por isso, o recurso a precedentes causa mais confusão do que clareza.
John Bolton, o bigodudo e combativo conselheiro de Segurança Nacional, contribuiu para a bagunça analítica ao voltar para trás no tempo.
“Nós não temos medo de dizer a palavra Doutrina Monroe”, declarou ele, tentando separar o caso da Venezuela de outros países com regimes infernais, mas com os quais os Estados Unidos têm a obrigação de manter relações, negociar e contemporizar.
“É um país no nosso hemisfério. E o objetivo dos presidentes americanos, desde Ronald Reagan, é ter um hemisfério completamente democrático.”
Primeiro, Doutrina Monroe são duas palavras.
Segundo, o objetivo do mandamento político estabelecido no século 19 não tinha nada a ver com democracia e sim com cortar as asinhas de potências europeias no “quintal” americano.
Terceiro, não é uma boa ideia evocar esse dinossauro num momento em que a Doutrina Trump conseguiu praticamente um milagre.
Todos os países latino-americanos fora da esfera de influência de Cuba, além do politicamente corretíssimo Canadá, estão unidos no repúdio ao madurismo, inclusive porque vários sofrem as consequências da fuga em massa de venezuelanos.
Os europeus que contam, entre os quais muitos que normalmente jamais seriam vistos na companhia de Donald Trump, também aderiram em massa ao plano de reconhecer a legitimidade de Juan Guaidó como presidente interino e deslegitimar Nicolás Maduro.
Até a maioria dos parlamentares americanos de oposição, que diriam que Trump não sabe nadar se ele andasse sobre as águas para salvar criancinhas a perigo, está a favor do boicote contra Maduro.
Para manter a excepcional onda de pressão, Guaidó tem que estar na Venezuela. Caso contrário, se transformaria em mais um “líder no exílio”, como tantos na história, que vão se desidratando com o tempo.
Isso cria um problema – mais um – para Maduro. Solto, Guaidó é uma prova ambulante de que o regime é um tigre de papel. Preso, provoca comoção nacional. Por isso os papéis de gato e rato são intercambiáveis.
É possível dizer que as barbaridades do madurismo pesaram mais na frente unida internacional do que as habilidades diplomáticas do governo Trump.
Mas quem tem a chave do cofre são os americanos. Por causa do aperto nas sanções, o maior ativo da Venezuela no exterior, a Citgo, dona de refinarias e de uma rede de cinco mil postos de gasolina nos Estados Unidos, teve que cortar todos os laços com a Venezuela.
Foi a Assembleia Nacional, o órgão na prática impotente em nome do qual Guaidó se proclamou presidente, quem nomeou o novo conselho da Citgo.
Detalhe surreal: afundada na miséria criada por ela mesma, a petrolífera estatal da Venezuela, PDVSA, transferiu para a russa Rosneft 49,9% da Citgo.
A empresa agora é dirigida por profissionais simpáticos à oposição venezuelana. Seus ingressos irão para uma conta blindada ao madurismo.
Faz parte do jogo de pressões e contrapressões que os Estados Unidos digam ter “todas as opções na mesa”. E que os russos prometam “fazer todo o possível” para evitar uma intervenção militar.
Existe um oceano entre não descartar o recurso à força e seu uso real, apesar das visões que deram para circular sobre a hipótese, inexistente, de conflagração armada.
Os Estados Unidos não vão invadir a Venezuela e a Rússia não vai armar a “resistência”. Já que estamos nesse capítulo, não apareceram “tanques” venezuelanos na fronteira com o Brasil, mas veículos antidistúrbios.
E nem Maduro seria louco o suficiente para deslocar o sistema de defesa antiaérea S-300 para a região fronteiriça.
A Rússia realmente vendeu para a Venezuela o formidável sistema móvel, composto de um conjunto de caminhões levando radar, centro de comando, lançadores de mísseis e recarregadores.
E a Rússia também já experimentou a encrenca criada por deixar revólver na mão de macaco. Um sistema semelhante, o Buk, presenteado aos separatistas russo-ucranianos, derrubou um avião de passageiros da Air Malaysia em julho de 2014, matando 298 civis inocentes.
Não seria uma boa ideia repetir o erro dum lugar do fim do mundo, onde a Rússia não tem acesso por terra nem interesse vital, como a Síria.
Juan Guaidó já ofereceu aos russos o céu e as estrelas também numa Venezuela pós-Maduro, deixando uma porta bem aberta para a Doutrina Putin, de confrontar metodicamente os Estados Unidos em toda e qualquer circunstância.
Já a Doutrina Trump não tem nada de metódica. Segundo o site Axios, Donald Trump focou a atenção na Venezuela em 2017, quando conheceu Lilian Tintori, mulher de Leopoldo López, o líder da oposição então preso em Ramo Verde, a penitenciária militar onde ficam os presos políticos.
Linda, loira e ex-campeã de kitesurfe transformada em valente militante pela causa do marido e do país, Lilian havia ido à Casa Branca visitar o vice-presidente Mike Pence e o senador Marco Rubio, os dois encarregados da questão venezuelana.
Pence levou-a, de surpresa, para conhecer Trump. O presidente a ouviu e, na hora, escreveu um tuíte em favor da libertação de López – hoje em prisão domiciliar, impedido de qualquer manifestação pública.
Marco Rubio já contou que Trump tem simpatia especial por venezuelanos que conheceu na Flórida e em seu clube de luxo de Mar-a-Lago. Certamente diferentes do povão que passa fome e todo tipo de necessidade, mas amargurados com a situação de seu país.
Através deles, Trump formou a ideia de que a Venezuela é um país da esfera da cultura ocidental, sem nada do “caso perdido” que ele vê em lugares como Síria, Iraque e Afeganistão.
É claro que existe um grande jogo, no qual Nicarágua e a aparentemente inexpugnável Cuba iriam os dominós seguintes.
Também interessa a ele ser visto, de maneira tão surpreendente para os antitrumpistas, como o “libertador da Venezuela”. E é claro que a autonomia energética dos Estados Unidos ajuda na hora das sanções.
A Venezuela tem no momento 500 milhões de dólares em barris de petróleo embarcados em navios sem destino certo por causa das sanções.
Os jogos são feitos e refeitos praticamente a cada dia. Hoje é um desses dias.