Pedro Sánchez, o primeiro-ministro espanhol, não fez um governo ruim, considerando-se que é de esquerda e traz embutida a receita de desastre econômico de realizar ao pé da letra seu programa.
Mudou a legislação trabalhista, aumentou o salário mínimo, tirou os restos mortais de Franco da igreja erguida para abrigá-los e voltou atrás quando uma legislação ensandecida, em vez de proteger as vítimas de abusos sexuais, ajudou perpetradores já condenados a sair da cadeia. Na economia de 1,4 trilhão de dólares, manteve o padrão da “doença europeia”: crescimento fraco, com perspectivas anêmicas, mas com desemprego sob controle e sem grandes dramas.
Não cometeu nenhuma besteira brava nem comprometeu o excelente padrão de vida da Espanha, um país de dar inveja em inúmeros aspectos, começando pelas ruas limpas e bem cuidadas das cidades e culminando num sistema que concilia monarquia, democracia e regimes autônomos para as regiões onde o separatismo tem muito apelo, mas não consegue se impor. Não fragmentar o país já é uma vitória para qualquer governante, embora a direita critique Sánchez por excessivas concessões, incluindo anistia a separatistas catalães que haviam cometido crimes institucionais.
Sofreu o natural desgaste do poder e seu partido, o PSOE, levou uma sova federal nas eleições municipais e regionais, infligida pelo partido de direita, o Popular. Sánchez, conhecido como guapón, ou bonitão, pelas fãs – e pelos fãs também -, apelou. Antecipou para 23 de julho as eleições gerais que só aconteceriam no fim do ano. É arriscado, mas faz sentido. Depois da pancada nas urnas, governaria de maneira esvaziada, como um pato de uma pata só, até dezembro.
O primeiro-ministro apelou também no discurso, endossando a vertente da hiperpolitização que não combina nada com um político racional e equilibrado como ele. E ainda colocou o Brasil no meio. Acusou o PP e o Vox, o novo partido de direita nacionalista que teria que entrar numa coalizão de governo para dar maioria, de serem de “duas direitas extremas como Trump e Bolsonaro”. E apelou aos eleitores para escolher ficar com que está do “lado de Lula ou do lado de Bolsonaro”.
Parece que anda meio obcecado. E talvez não tenha recebido a atualização das recentes manobras do presidente citado como bom exemplo, ao abraçar o déspota venezuelano como se fosse um grande estadista, apenas, pobrezinho, prejudicado por não fazer uma narrativa vencedora – aprender palavra nova e usá-la erradamente está deixando a boca torta.
O primeiro-ministro, o PSOE e respeitáveis jornais de esquerda como o El País são coerentes com os princípios democráticos abraçados quando os socialistas desistiram das maluquices revolucionárias do passado e condenam as atrocidades praticadas pelo regime bolivariano na Venezuela.
Ao contrário de seus aliados do Podemos, de extrema esquerda, cujo ex-líder, Pablo Iglesias, trabalhou para Hugo Chávez na Venezuela e foi aquinhoado com aquelas malas recheadas que circulavam entre aliados esquerdistas na época em que os bolivarianos ainda não haviam conseguido escangalhar até com a indústria do petróleo.
Também apoiam plenamente a causa da Ucrânia, ao contrário dos companheiros cucarachas que não entendem a cabeça dos “sociais-democratas”, nas palavras do amicus maximus do déspota venezuelano.
Pedro Sánchez está nervoso porque as pesquisas não são nada boas: dão 31% dos votos para o PP e 25% para o PSOE, com encolhimento ou desaparecimento, na prática, do Podemos e do Cidadãos, que em certo momento pareceu uma boa alternativa de centro-direita. Só consegue maioria, muito apertada para cravar nesse momento, se a extrema esquerda não rachar, como está acontecendo agora.
A perspectiva da derrota tira qualquer um do sério e abre caminho a bobagens como dizer que agora “cabe esclarecer as coisas e saber o que a sociedade quer”. E se a sociedade quiser fazer uma mudança, através da democrática alternância de poder, da mesma forma que aconteceu quando acabou com dez anos de governo de direita e elegeu o partido dele, em 2018? Ah, aí estará escolhendo a “corrente reacionária” que percorre a Europa – uma referência bobinha ao que deveria ser uma oscilação normal do pêndulo político.
Comparar a brucutus, que querem destruir “todas as conquistas” de seu governo, os espanhóis que votaram na direita e consagraram figuras ascendentes no cenário político, como Isabel Díaz Ayuso, a governadora da região de Madri, não ajuda Sánchez a ganhar votos, mas este é o discurso dominante hoje até em países que pareciam ter saído da polarização redutora.
Até o maior adversário de Sánchez, o nada carismático Alberto Núñez Feijóo, entrou no ritmo da dança do apocalipse. “Espanha ou Sánchez”, proclamou o líder do PP.
Está errado, da mesma forma que Sánchez. A Espanha é o maior exemplo dos horrores que acontecem quando esquerda e direita se armam e vão à guerra, como aconteceu literalmente em 1936. É por isso que a retórica incendiária de campanha, previsível e até natural em outros países, deve ser mais cautelosa lá.
Preservar o magnífico patrimônio que o país criou, com a contribuição de todos, ao construir a democracia pós-franquista é um bem tão valioso que deveria estar acima de eventuais dores de cotovelo políticas.
E lembrar que uma derrota nas urnas não significa ser banido, cassado das redes, desmonetizado, exilado, preso ou fuzilado, e sim que temporariamente se fica fora do poder, ajudaria a acalmar os ânimos. Sem colocar, equivocadamente, o país dos outros no meio.
Mais um lembrete: além de ser contra a Ucrânia e a favor do regime venezuelano, o presidente a quem Sánchez considera exemplar quer furar o solo da Amazônia e tirar petróleo, um direito dos brasileiros que deixa os europeus surtados, principalmente a esquerda que adotou o discurso ambientalista como substituto do projeto revolucionário.
Com exceção da Grã-Bretanha e da Noruega, eles não têm petróleo e não querem que os outros tenham – ou pelo menos que novas explorações sejam feitas. Ah, sim, e a ministra que ia tirar a comida da mesa dos brasileiros, naquela notória campanha do passado, agora está sendo tirada do Ministério do Meio Ambiente.
É isso que dá envolver outros países em assuntos internos sem ter o dossiê completo.