Seria fácil dizer que o mundo artístico está dividido em relação à guerra desencadeada quando o Hamas atacou comunidades israelenses, mas isso não é verdade.
As manifestações de solidariedade, não ao governo, mas à nação israelense, brutalmente traumatizada, partem, na maioria, de artistas de origem judaica – e assim mesmo, nem de todos.
Foi assim com a promoção à qual Gal Gadot, atriz israelense que encarnou a Mulher-Maravilha, somou o prestígio de seu nome. Por iniciativa do diretor Guy Nattiv, a transmissão no Museu da Tolerância a nomes do mundo do cinema deveria ilustrar o tamanho das atrocidades cometidas.
A briga, aos socos, em frente ao museu mostrou que na verdade muitos não querem ver o que aconteceu para continuar apegados a uma visão não permeável a fatos. “O Museu da Tolerância está exibindo um filme a favor do genocídio”, dizia um dos cartazes de manifestantes pró-palestinos.
Como argumentar com esse nível de distorção?
A realidade é a seguinte: quem acha que Israel tem a culpa por todos os males do mundo não vai mudar de ideia nem diante das mais cabais provas de agressão bárbara. Quem não quer ver que o Hamas programou o ataque – mais bem sucedido do que esperava – com o objetivo específico de provocar o confronto, segundo seus próprios porta-vozes, vai continuar achando isso.
Obviamente, isso não muda a situação crítica vivida pela população civil de Gaza, mas altera o enfoque moral. Israel tem o direito de se defender, mas ao fazer isso com força, acaba provocando um número alto de vítimas civis que prejudica a sua legitimidade.
São questões de alta complexidade e têm provocado discussões em redações de meios de comunicação e até em governos – algumas em altos brados.
Na Inglaterra, por exemplo, discute-se se uma grande manifestação pró-palestinos deveria coincidir com o dia de rememorar os mortos em guerras, uma ocasião solene, com a presença da família real fazendo seu melhor papel.
Proibir protestos é algo que regimes democráticos veem com merecidas ressalvas, mas Suella Braverman, que ocupa uma posição equivalente à de ministra do Interior, incendiou o debate ao escrever para o Times de Londres que o chefe da Scotland Yard, Mark Rowley, estava privilegiando os manifestantes. Se fosse outra causa, não agiria assim. O governo do primeiro-ministro Rishi Sunak, um hinduísta que é de origem indiana como Suella e caminha com cuidado sobre seus mocassins Prada para não transparecer nenhuma animosidade com muçulmanos, está “estabelecendo os detalhes” sobre o artigo da ministra que criticou o comandante da polícia. É claro que a oposição pediu a cabeça dela.
Detalhe: 50% das pessoas comuns, segundo uma pesquisa de opinião, concordam com Suella e não querem que os dois eventos sejam simultâneos – 34% discordam e 16% não sabem.
Até no governo americano existem divergências. Um documento convenientemente vazado por funcionários do Departamento de Estado demanda que as críticas feitas a portas fechadas às táticas militares de Israel sejam levadas ao público, para desfazer a imagem dos Estados Unidos como “um ator tendencioso e desonesto”.
“Precisamos criticar publicamente as violações de Israel às normais internacionais como não limitar as operações ofensivas a alvos militares legítimos”.
Discernir alvos militares de uma organização que deliberadamente se mistura a instituições civis é, na prática, impossível, mas as vítimas colaterais têm um efeito sobre a opinião pública que, em algum momento, levarão os Estados Unidos a pressionar Israel de maneira mais agressiva. As “pausas humanitárias” de quatro horas por dia, anunciadas ontem, são um resultado dessas pressões.
O documento do Departamento de Estado foi colocado num canal especial da chancelaria americana chamado Dissent Channel, dedicado justamente a opiniões divergentes às das políticas oficiais. Note-se que isso acontece num momento em que o secretário de Estado, Antony Blinken, está fazendo malabarismos para pressionar Israel a deixar entrar ajuda humanitária, manter alinhados países aliados tradicionais como Egito e Jordânia e traçar o futuro de Gaza pós-guerra – ou seja, missões dificílimas.
Blinken, segundo o Politico, está fazendo reuniões para ouvir as críticas dos inconformados, uma impecável atitude politicamente correta. Mas ele tem o apoio mais importante possível, o de Joe Biden. O presidente e seu secretário de Estado coincidem que um cessar-fogo agora fortaleceria o Hamas e prejudicaria a própria possibilidade de uma pacificação, por imperfeita que seja.
Quanto tempo Biden vai resistir às pressões? Entre seus próprios eleitores – e todos os políticos pensam em eleição o tempo todo – o apoio a Israel está diminuindo, foi de 30,9% nas primeiras semanas de outubro, sob o impacto da chacina, para 20,5%.. No total, 50% dos americanos favorecem a posição do presidente e 49% são contra. Dá para segurar até quando?
Nem a Mulher-Maravilha sabe a resposta.