A democracia é um patrimônio de todos, o equilíbrio entre os três poderes é uma de suas colunas fundamentais e pintar os rivais nas urnas como brucutus do autoritarismo para ganhar vantagens eleitorais mina o terreno sobre o qual ela se assenta. Isso se aplica tanto ao Brasil quanto aos Estados Unidos. Aliás, a campanha eleitoral americana foi mais um dos indícios da brasilianização dos Estados Unidos, um rótulo usado, com a ressalva de todas as diferenças, como sinônimo de instituições fragilizadas, desigualdade ofensiva, guetos de miséria e altos índices de criminalidade. Há mais de uma década, virou moda entre intelectuais de esquerda dizer que a democracia corre riscos, mas a maneira como essa tese foi usada na eleição americana não tem precedentes. Joe Biden agarrou-se a ela como se estivesse embarcando na última nave antes do dilúvio. Michael Beschloss, um especialista em história presidencial (convocado no início do governo Biden para pintar o presidente como uma versão turbinada de Franklin, uma piada ridícula) foi mais sinistro ainda. “Daqui a cinquenta anos, se os historiadores ainda puderem escrever neste país e houver editoras e imprensa livre — não tenho certeza sobre isso —, um historiador dirá que esteve em jogo nesta semana se seremos uma democracia no futuro, se nossos filhos serão presos e concebivelmente mortos”, disse ele, de maneira quase inacreditável para um ator racional e profissional do debate público. Para não ficar atrás, o líder democrata na Câmara, James Clyburn, atropelou a lei de Godwin e disse que os EUA estavam indo pelo mesmo caminho da Alemanha nos anos 1930.
O barco de Biden, Beschloss e Clyburn navegou por águas traiçoeiras. A maioria dos eleitores ignorou os avisos apocalípticos e votou como se quisesse garantir o equilíbrio entre forças que hoje se proclamam excludentes: Câmara para os republicanos, Senado para os democratas. Não querem contestar a legitimidade de resultados eleitorais ou solapar a democracia, mas sentem que o governo precisa abrir os ouvidos aos que sofrem com o buraco que a inflação causa no padrão de vida de todos.
Muito da campanha do Partido Democrata foi focado na disputa presidencial de 2024, daí o tom excessivamente alarmista. Trump vai anunciar agora que é candidato e seu flanco mais vulnerável é a contestação do resultado da última eleição, que acabou levando ao protesto fora de controle de 6 de janeiro de 2021, chamado exageradamente de “insurreição”. Foi um grande erro invadir a sede do Congresso americano, da mesma forma que é equivocado pedir intervenção militar no Brasil. Principal motivo, além dos óbvios: as forças políticas opostas ficam na posição da vantagem moral. Dar argumentos de presente ao inimigo, perdão, adversário — o exagero sempre escapa —, não é inteligente. “O melhor argumento contra a democracia é uma conversa de cinco minutos com o eleitor médio” é uma das frases famosas que Churchill nunca disse. Mas tolerar esse incômodo “eleitor médio” e sentir a força de suas motivações é um processo de aprendizagem para entender que ninguém é dono da democracia, feita de um sutil tecido político que deve nos envolver e amparar, não amarrar como uma camisa de força.
Publicado em VEJA de 16 de novembro de 2022, edição nº 2815