Não tem uma mãe ou avó de meninas que olhe as fotos das pequenas vítimas de um crime hediondo no interior da Inglaterra e não identifique suas próprias garotinhas. Elas estavam num “clube de férias”, da cidadezinha de Soutthport, fazendo aulas de ioga e de dança e pulseiras da amizade, com o tema Taylor Swift.
Axel Rudakubana, que dentro de cinco dias completa 18 anos, saiu de táxi de sua casa, entrou na escola de dança com um facão curvo e começou a chacina. Matou três meninas, Bebe King, de seis anos, Elsie Dot Stancombe, e Alice da Silva Aguiar, uma graciosa portuguesinha de nove anos. Mais oito crianças foram esfaqueadas, das quais cinco em estado grave.
Também chegou a crítico o estado da professora de dança Leanne Lucas, que se jogou sobre duas meninas, para protegê-las, sofrendo ferimentos graves nos braços e nas costas. John Hayes, um comerciante de 61 anos, ouviu os gritos e tentou socorrer as pequenas vítimas. Foi esfaqueado na perna.
Única notícia boa nesse filme de terror da vida real: duas menininhas feridas receberam alta.
“ATÉ QUANDO?”
A extrema comoção e a falta de informações – o nome do assassino, mantido em sigilo por ser menor, só pode ser revelado ontem, depois que o jornal Daily Mail ganhou uma ação na justiça – desencadeou uma descontrolada onda de boatos. Um deles dizia que um homem de nome árabe, que havia chegado ao país no ano passado, num dos barcos de clandestinos que atravessam o Canal da Mancha, era o esfaqueador
A comoção de transformou em revolta e houve protestos em frente a mesquita de Southport. A polícia interferiu e foi um festival de pedradas e outros ataques. Muitos desses habitantes revoltados podem realmente ser identificados como sendo de extrema direita? Alguns lemas de fato coincidem, inclusive o grito de “Inglaterra até a morte”, mas se todos tivessem esse tipo de militância, a extrema direita estaria no poder e não nas franjas do espectro político.
Houve protestos também em frente à residência do primeiro-ministro, agora o trabalhista Keir Starmer. Ele foi levar flores e homenagear as criancinhas chacinadas, ouvindo gritos espontâneos de “Até quando?”.
Há suspeitas de que houve até manipulação de hackers russos nas redes sociais, para aumentar o clima de animosidade social.
Todos os grandes meios de comunicação culparam a extrema direita, sem sequer tentar colocar o contexto em que aconteceu a explosão de protestos.
POLICIAIS ESMURRADAS
O contexto: na semana passada, circulou um vídeo em que um policial aparece chutando um detido no chão, no aeroporto de Manchester. Ele e o irmão, Fahir e Ahmad Khan, foram apresentados na mídia como cidadãos cumpridores das leis e bondosos colaboradores de atividades filantrópicas.
Um advogado de relógio de brilhantes e lenço palestino no pescoço disse que o homem chutado tinha um “cisto” na cabeça por causa da agressão – já dava para imaginar uma polpuda indenização.
Houve grandes manifestações de homens de origem paquistanesa – em Rochdale, a localidade dos irmãos, onde a população muçulmana é de quase 40% – em frente a uma delegacia da polícia. Todos gritavam a convocação islâmica à guerra santa: “Allahu Akbar”.
Apesar do caráter religioso, essa invocação equivale, no contexto que estamos vendo, a uma rejeição a todos os valores da sociedade britânica e os cidadãos comuns percebem isso muito bem.
Reviravolta do caso: logo apareceu o vídeo inteiro em que os filantrópicos irmãos atacam três policiais que os abordam junto a uma máquina de tíquetes de estacionamento no aeroporto. Aparentemente, havia ocorrido um incidente num avião que pousou em Manchester e eles estavam investigando.
Duas das policiais são esmurradas várias vezes no rosto – uma sofreu fratura no nariz, pior do que lutadora de boxe intersexo nas Olimpíadas. O policial homem também é socado e jogado no chão. É ele que depois chuta um dos agressores.
ESTUPROS CONTÍNUOS
O que parecia um incidente protagonizado pela polícia má e racista mudou completamente de perspectiva.
Outro detalhe importante para o contexto: foi o fato de envolver Rochdale, o epicentro de um escândalo que durou vários anos, o das meninas que, aos doze ou treze anos, começavam a receber bebidas e drogas para serem estupradas continuamente por homens adultos, todos de origem paquistanesa.
As denúncias das meninas que queriam escapar à exploração coletiva e apelavam à polícia ou a órgãos de proteção de menores eram ignoradas. Uma dessas meninas contou que deve ter sido estuprada mais de cem vezes, por múltiplos criminosos, ao longo de três anos, sendo inclusive forçada a abortar.
O caso se tornou notório, com documentários e longas reportagens retratando o martírio das jovens vítimas. A percepção corrente entre a população foi de que os policiais sacrificaram as meninas com medo de serem chamados de racistas ou por se identificarem mais com os perpetradores.
AMEAÇA COLETIVA
É essa percepção que tem um potencial de alta volatilidade. Hipótese: acontece um crime chocante, de terrorismo ou psicopatia, a população forma uma turba de vingadores contra pessoas de origem estrangeira, uma mesquita é incendiada, inocentes são atingidos e logo vem a contrarrepresália.
Assim afundaria no caos a ordem social de um dos países mais bem organizados e civilizados do mundo.
O problema não é só britânico e se repete em outros países europeus, como Itália, Holanda, Bélgica, França, Alemanha e escandinavos. A população original se sente “invadida” por imigrantes e seus descendentes que, ao contrário de tantos outros exilados do passado, não só não abraçam os mais caros valores ocidentais como preferem que prevaleçam princípios religiosos ou totalmente alheios a eles.
Quando podem, gritam isso nas ruas. “Allahu Akbar” se transforma em ameaça coletiva. Quando acontece algo como a guerra em Gaza, desencadeada deliberadamente pelo Hamas, ouve-se “morte aos sionistas” nas capitais de países onde a maldição do antissemitismo parecia vencida depois de tantos horrores que causou.
Em lugar da integração, a divisão vai se aprofundando.
COMENTÁRIOS FECHADOS
O massacre das meninas, as pequenas swifties tão monstruosamente esfaqueadas numa aula de dança, é mais um tijolo nessa percepção e não parece existir nada no sentido de que isso vá melhorar.
Só para dar uma ideia do clima: todos os jornais fecharam o espaço de comentários sobre a atrocidade, um indício de que o estado de espírito dominante é muito grave.
Um dos detalhes trágicos da chacina é que Axel Rudakubana nasceu em território britânico, protegido por garantias democráticas e de segurança, doze anos depois do grande genocídio na Ruanda de seu pais. Entre 500 mil e 800 mil pessoas da etnia minoritária tutsi foram exterminadas ao longo de três meses, em 1990, tanto por milicianos armados quanto por cidadãos comuns, que usavam facões numa orgia coletiva de violência inimaginável.
O juiz que liberou seu nome declarou que o objetivo era combater a desinformação – em outras palavras, mostrar que o assassino não é um imigrante muçulmano. Há manifestações marcadas para hoje à noite em mais de dez cidades.