Nas linhas de abertura de Versos Satânicos, “dois homens vivos, reais e adultos caíram de uma grande altitude, 29 mil e dois pés, sem a ajuda de paraquedas ou asas”. A descrição que Salman Rushdie faz dos dois personagens, um atravessando o ar de cabeça para baixo, com o paletó do terno cinza abotoado e os braços junto ao corpo, é assustadoramente parecida com as cenas terríveis de vítimas que saltariam para a morte fugindo do incêndio provocado pelos aviões sequestrados que vararam o World Trade Center. Os personagens são atores indianos, um famosíssimo de Bollywood recém-recuperado da Doença Fantasma, outro radicado na Inglaterra, que se cruzaram por acaso no 747 sequestrado por militantes da religião sikh. A mais radical é a belíssima mulher do quarteto. É ela quem escolhe o refém que será executado, um sikh que abandonou exigências religiosas como usar sempre um turbante e não cortar o cabelo. “Apóstata traidor bastardo”, diz ela, antecipando os rótulos que seriam colados no escritor pela fatwa, a sentença de morte lavrada pelo grão-aiatolá Khomeini, o líder da revolução fundamentalista do Irã, que finalmente levou à gravíssimas punhaladas infligidas a Rushdie por um xiita de origem libanesa. O livro foi lançado em 1988, a fatwa decretada em 1989 e os atentados do 11 de Setembro, culminação ainda não ultrapassada do fanatismo fundamentalista, foram em 2001.
“Diz Mario Vargas Llosa: ‘Escrever romances é um ato de rebelião contra a realidade, contra Deus’ ”
O escritor como criador — ou Criador — de mundos, um antecipador da realidade que virá, um avatar do Divino, é um dos fundamentos mais conhecidos da literatura. Martim Vasques da Cunha reproduziu na Folha de S.Paulo um trecho da tese de doutorado de Mario Vargas Llosa, intitulada García Márquez: História de um Deicídio. Diz o seguinte: “Escrever romances é um ato de rebelião contra a realidade, contra Deus, contra essa criação de Deus que é o real. É uma tentativa de correção, mudança ou abolição da realidade real, da sua substituição por uma realidade ficcional criada pelo romancista”.
Na realidade ficcional de Rushdie, a sequestradora explode o avião sobre o Canal da Mancha e os dois personagens chegam intactos ao chão, um como um recalcitrante e insone arcanjo Gabriel, outro como seu oposto de chifres. Entre os muitos recursos do arsenal do realismo mágico, o escritor indiano cria uma vivíssima Jahilia, a cidade de areia construída em torno da Rocha Negra, a pedra divina junto à qual Adão viu quatro pilares de esmeraldas encimados por um rubi gigantesco. Nessa Meca ficcional, circula um comerciante chamado Mahound, com “fronte alta, ombros largos e cílios compridos como os de uma garota”, que prega uma estranha religião na qual existe apenas um Deus, não os 360 cujas imagens circundam a Rocha. Seus seguidores são um carregador de água, um imigrante persa e um escravo. Brevemente, para ajudar a propagar sua mensagem, Mahound aceitará a existência de três das mais poderosas deusas veneradas em Jahilia. São esses os versículos satânicos.
Rushdie em nenhum momento menospreza o profeta de uma das grandes religiões do mundo, mas outro dos personagens da cidade, o satirista Baal, avisa: “O trabalho do poeta é nomear o inominável, apontar fraudes, tomar partido, comprar brigas, dar forma ao mundo e impedi-lo de dormir”. Voltar um dia a impedir o mundo de dormir é a obra-prima que torcemos para que Salman Rushdie produza.
Publicado em VEJA de 24 de agosto de 2022, edição nº 2803