Para tentar decifrar o mistério que cerca a renúncia de Saad Hariri, o “princípio Guerra dos Tronos” ajuda um pouco: todos os que já foram inimigos podem fazer alianças com antigos adversários – ou simplesmente voltar a se matar com entusiasmo.
Mais um: todos os países que têm interesses no Oriente Médio interferem na política local. Dentre estes, estão a Arábia Saudita de um lado e Irã e Síria na frente oposta. E outro: cada meio de comunicação, em geral canais de televisão, apresenta a versão dos fatos que interessa a seus donos.
Segundo a Al Arabiya, por exemplo, Saad Hariri está feliz e protegido na Arábia Saudita, o país que o banca desde que se tornou o herdeiro político do pai, Rafic Hariri, assassinado em 2005 por um motorista suicida quando sua comitiva passava pelo centro de Beirute, a capital que havia reconstruído com dinheiro saudita depois de quinze anos de guerra civil.
Segundo a Al Jazira, que obedece ao emir de Catar, atualmente em choque com os primos mais poderosos dos clube dos bilionários do petróleo, o exato oposto aconteceu: os sauditas deram um golpe em seu protegido, transformando-o em desprotegido.
A Al Arabiya, evidentemente, pertence ao governo saudita, atualmente em estado de ebulição com as mudanças e prisões nos altos escalões promovidas pelo príncipe herdeiro Mohammed Bin Salman.
Segundo a narrativa que interessa ao poder saudita, é tudo culpa do Irã – uma possibilidade que não pode ser descartada. Através do Hezbollah, a organização xiita que o regime dos aiatolás formou, treinou e patrocinou, o Irã exerce uma grande influência no Líbano.
Tão grande que domina hoje a política libanesa em sua tradicional divisão: presidente cristão, primeiro-ministro muçulmano sunita, presidente do Congresso xiiita.
Num exemplo espetacular do “princípio Guerra dos Tronos”, o presidente é Michel Aoun, cristão maronita que só conseguiu o cargo depois de se recompor com o Hezbollah, o qual combateu ferozmente, na etapa final da guerra civil libanesa.
Aoun, ex-general e autoproclamado presidente, partiu para o exílio em Paris como derrotado com honra pela luta heróica contra o Hezbollah e seus patronos. Foi literalmente tirado do palácio presidencial por forças sírias que na época dominavam quase todo o Líbano.
Voltou recomposto com os antigos inimigos e assinou um memorando com o Hezbollah, que domina o Parlamento com seus aliados (nota ilustrativa: pelo menos nove parlamentares são parentes de chefes de clãs assassinados, incluindo Saad Hariri e sua irmã). Aoun conseguiu assim ser eleito presidente.
Hariri também teve que fazer algum tipo de composição para voltar a ser primeiro-ministro. Aceitou um governo de coalizão com o Hezbollah, mesmo sabendo muito bem como seu pai foi morto. Por isso, diz a versão predominante no Líbano (e na Al-Jazira), foi chamado para uma conversa em Riad e caiu numa armadilha.
Uma reportagem da agência Reuters endossa, com detalhes, essa versão. Saad Hariri desembarcou no último dia 3 sem os salamaleques de hábito no aeroporto de Riad. Seu celular foi confiscado e no dia seguinte apareceu na televisão saudita para anunciar a renúncia. Mandou uma foto com o rei Salman para desanuviar as suspeitas. Obviamente, elas aumentaram.
A renúncia coincidiu, espetacularmente, com a onda de prisões de altos figurões sauditas, incluindo 11 príncipes – portanto, da prolífica tribo real. São 208 presos e 800 bilhões de dólares bloqueados.
Uma parte dos presos foi para o Ritz-Carlton, o luxuoso hotel que ficou sem hóspedes e, pior ainda, sem internet. Mas vazou uma foto de um salão coberto por colchões onde os ex-poderosos pensavam nas ironias da vida. O preso mais conhecido é um dos homens mais ricos do mundo, o príncipe Alwaleed Bin Talal.
Apesar da fortuna e dos laços com empresas globais, como o Citigroup e o Twitter, “onde está Alwaleed” é uma pergunta politicamente menos importante do que “onde está Saad”. Fisicamente, é possível que ambos estejam em prisão domiciliar em seus palácios – o de Saad, mesmo sendo milionário, bem mais modesto.
Saad chegou a receber o embaixador da Itália e do da Rússia, numa espécie de prova de vida. Seu próprio partido, o Movimento para o Futuro, acha muito estranha e fora do padrão a guinada que ele deu.
O ministro das Relações Exteriores da Arábia Saudita, Thamir Al-Sabhan, tocou fogo no mistério. “Você mataram o pai dele e mataram a esperança do povo libanês de levar uma vida em paz e moderação. E vão tentar matá-lo politicamente e fisicamente”, disse, em linguagem nada diplomática.
“Logo vamos revelar quem vendeu os libaneses e agora os incita contra nós”, ameaçou o ministro. Detalhe sem nenhuma importância, mas revelador de mentalidades: nas redes sociais árabes, Al-Sabhan, que normalmente fala manso e não usa barba, é criticado pela aparência “efeminada”.
“Aqui no reino da Arábia Saudita, estou livre. Tenho total liberdade, mas também preciso cuidar da minha família”, disse ontem o próprio Hariri, prometendo voltar em questão de dias. Convenceu? Até sua linguagem corporal foi analisada como “desconfortável”. A reação mais comum foi a hashtag “sob pressão”.
Importante: a entrevista foi dada a televisão do Movimento para o Futuro, ou seja, a dele. Num país em que todos conspiram o tempo todo , as teorias da conspiração são moeda corrente.
Seja lá o que digam, mostrem ou tentem comprovar os sauditas, quem desconfia deles nunca vai acreditar. Mesmo que Saad Hariri apareça saltitando em Paris, onde passa a maior parte do tempo, muitos sempre vão achar que virou refém dos patrões.
Num resumo rápido, a situação atual nas frentes mais envolvidas é a seguinte: um primeiro-ministro que sumiu, o Hezbollah passando-se por defensor de um líder sunita, bilionários presos num hotel de luxo em Riad, um agravamento da guerra quente no Iêmen – outro país onde sauditas e iranianos se confrontam.
Por enquanto, a frente mais enigmática da guerra por procuração entre Arábia Saudita e Irã, em fase de relativa baixa intensidade na Síria, transferiu-se para o Líbano. Pobre Líbano.