Está difícil ser mulher, embora tenha fila de gente querendo entrar para a categoria. A própria palavra “mulher” tem sido usada com cautela. Por ser considerada uma agressão, micro ou macro, aos que, tendo nascido biologicamente do sexo feminino, declaram pertencer ao outro clube. Daí decorrem alguns absurdos literalmente ridículos. Num tuíte sobre a nova recomendação para exames de colo do útero da Sociedade Americana do Câncer, a CNN anunciou que “indivíduos com cérvix” devem fazer o teste a partir dos 25 anos até os 65. A ideia é não ofender mulheres biológicas que se tornaram homens trans, mas continuam a ter aparelho reprodutor feminino. Incluindo colo do útero. Na Inglaterra, a situação é mais surreal ainda. Homens trans que se registraram como tal no Sistema Nacional de Saúde não recebem uma cartinha avisando que está na hora de fazer o exame de colo do útero e a mamografia. Embora continuem tendo colo do útero e, na maioria das vezes, mamas. Mulheres trans registradas como tal são convidadas a fazer o exame, embora não tenham colo do útero. Georgios Papanicolau, o médico grego que pesquisou os ciclos reprodutivos e descobriu as diferenças entre células malignas e normais no colo do útero, abrindo caminho para o exame que detecta câncer cervical em seu início, provavelmente ficaria intrigado.
Uma encrenca que já se tornou um clássico contemporâneo começou quando J.K. Rowling reclamou do tuíte de uma ONG referindo-se às agruras, durante a pandemia, de “pessoas que menstruam” e são muito pobres, sem acesso a produtos de higiene. “Tenho certeza de que essa gente tem um nome”, ironizou a “mãe” de Harry Potter, fazendo trocadilhos com a palavra women, mulheres em inglês: “Wumben? Wimpud? Woomud?”. O mundo politicamente correto, ao qual ela pertencia, caiu sobre sua ruiva cabeça. No sentido virtual, mas com ameaças reais de morte e estupro, outro triste clássico quando brigas na internet envolvem mulheres. Ou pessoas que menstruam, têm colo do útero e não transitaram pelo espectro dos gêneros.
“Falar do físico de Beyoncé virou tabu, embora seja a característica mais marcante de suas apresentações”
Ser mulher, sem adendos, continua a ter importância quando prevalece a ideia regressiva de preencher cotas, como acontece agora com a senadora Kamala Harris. Apesar das muitas qualidades, ela não conseguiu emplacar como candidata a presidente e aceitou tocar o segundo violino, como vice de Joe Biden. Em 110% das reportagens sobre ela, é praticamente impossível achar referências à sua beleza, obviamente um atributo positivo para a imagem dela. Isso é considerado sexista, da mesma forma que falar sobre o físico fenomenal de Beyoncé virou tabu, embora seja a característica mais marcante, digamos, de suas apresentações, ao vivo ou em vídeo. Principalmente depois que a cantora virou politizada e escreveu “Feminista” na roupa. Se é que se pode se chamar de roupa. No Guardian, o guardião de todos os esquerdismos na imprensa em inglês, saiu uma reportagem sobre Anitta e sua carreira brilhante, cogitando inclusive a possibilidade de que se candidatasse a presidente. Nem uma palavra sobre o que ela tem em comum com Beyoncé. Fora, claro, pertencer à classe de “indivíduos com cérvix”.
Publicado em VEJA de 19 de agosto de 2020, edição nº 2700