Com escritores prodigiosos, músicos grandiosos e história convulsionada, tendo durante um breve período do século passado se apresentado como pioneira de uma revolução que abarcaria todo o planeta, a Rússia causa uma mistura de fascínio e repulsa ao resto do mundo há pelo menos 400 anos. De Ivan, o Terrível, o czar que matou o próprio filho, a Josef Stalin, o monstro que devorou pelo menos 20 milhões de vidas, a Rússia também tem uma tradição de líderes com algum tipo de psicopatia. Nas suas duas décadas no poder, Vladimir Putin parecia a negação disso: frio, calculista, determinado, cabeça de estrategista e mão de jogador de pôquer. Tirou a Rússia da dissolução sistêmica que castigou o país imediatamente depois do fim da União Soviética e chegou a ter 88% de aprovação popular. Com o poder cada vez mais absoluto sussurrando as seduções de praxe, imaginou-se Pedro, o Grande, o czar da grande modernização do século XVII. Deu para mergulhar em obras históricas e ouvir as teorias do filósofo barbudo Alexander Dugin sobre “o grande projeto eurasiático”, a emergência de um novo centro de poder mundial, com os russos bem no alto dele.
“Putin talvez não contasse com a reação mais importante de todas: a dos próprios russos”
O que poderia dar errado em avançar mais um passo nesse projeto e engolir um país fraco e mal organizado como a Ucrânia? Estados Unidos e países europeus já tinham assimilado a anexação da Crimeia, com sanções que mal arranhavam a couraça russa. Estavam debilitados pela pandemia e suas sequelas econômicas, incluindo inflação e preços do petróleo disparando. A economia russa, em compensação, estava bem-arrumada; o exército, reequipado; a opinião pública, controlada.
“Os deuses, quando querem nos castigar, atendem as nossas preces.” Sem ligar a mínima para a advertência deixada por Oscar Wilde, Putin projetou entrar na Ucrânia como Vlad, o Conquistador. Talvez imaginasse que a população etnicamente russa receberia os invasores de braços abertos, legitimando o abuso inominável. E talvez não contasse com a reação mais importante de todas: a dos próprios russos, e não apenas da pequena minoria oposicionista. De filhas da elite que deve tudo a Putin a milionários idem, passando por jornalistas e artistas que dependem da aprovação do Estado para existir, esboçou-se um clamor de repúdio propagado via TikTok, Instagram e Facebook.
Em 25 de agosto de 1968, poucos dias depois que tropas soviética entraram na Checoslováquia para acabar com o movimento reformista conhecido como a Primavera de Praga, apenas oito cidadãos russos, num ato sem precedente, sentaram-se na Praça Vermelha com pequenos cartazes de protesto escritos a mão. Todos acabaram em campos de trabalho ou hospitais psiquiátricos. Na era das redes sociais, a praça é virtual. Putin pode não ligar a mínima para posts no Instagram, mas não pode mudar o fato de que, em vez de mobilizar a alma russa, o ente coletivo que salva o país nas grandes crises, está provocando memes em que é ridicularizado. De grande czar da era moderna, agora parece recalcado, descontrolado e, por mais que subjugue um país mais fraco, inevitavelmente pequeno.
Publicado em VEJA de 9 de março de 2022, edição nº 2779