Por que conservadores levam sova e abrem caminho, à direita, para Farage
Ignorar princípios básicos, como menos impostos e menos imigrantes, faz o mais antigo partido do mundo encarar derrota histórica
Apocalipse, Armageddon e caminho aberto para o retrocesso e a falência nacional foram só algumas das qualificações usadas pela direita para descrever o avanço avassalador do Partido Trabalhista no Reino Unido. Também não foram poucas as autocríticas sobre os erros cometidos pelo Partido Conservador, tão alquebrado que fortaleceu uma oposição à sua direita, comandada por Nigel Farage, o homem que havia se retirado da política depois de consagrar sua causa máxima, o Brexit.
“Eu não concordo em tudo com o senhor Farage, mas nós tories precisamos refletir com honestidade e humildade, e nos perguntar como um partido mal lançado, com pouca infraestrutura, galvanizou o eleitorado e atraiu tantos dos que foram nossos eleitores pela vida toda”, escreveu a ex-ministra do Interior, Suella Braverman, uma das candidatas da ala da direita para assumir a liderança dos derrotado Partido Conservador, o mais antigo do mundo, fundado em 1834.
São muitas as explicações para a surra histórica: o Partido Conservador se desgastou em catorze anos de poder e a população sentiu uma queda no padrão de vida e nos serviços públicos como o de saúde, as maiores e mais unânimes queixas.
Não adianta argumentar, como fez o colunista Chris Mullin ao comentar na Spectator um livro sobre o complicado começo do século XXI para o Reino Unido. Guerra no Iraque (poucos se lembram dela e que foi o trabalhista Tony Blair seu responsável), crise financeira mundial, Brexit e Covid se alinharam na sequência chamada por Mullin de “uma maldita coisa depois da outra”.
Fila de espera
O crash de 2008 foi um momento crucial que destruiu a aposta na globalização feita pelo mesmo Blair. Seguiram-se os conservadores com os métodos tradicionais para consertar a casa: corte de gastos e, depois da derrama de dinheiro exigida pela pandemia para não permitir a quebradeira geral, aumento de impostos. Enquanto isso, a imigração continuava, descontrolada, e muitos britânicos sentiam que perdiam o controle de seu país. Os tradicionais eleitores do Partido Conservador também acusaram a perda de valores que estão na essência de suas convicções.
O New York Times publicou um ótimo conjunto de dados sobre os catorze anos dos primeiros-ministros conservadores (David Cameron, Theresa May, Boris Johnson, Liz Truss e Rishi Sunak).
Alguns deles: a imigração subiu 170%, a fila de espera para intervenções hospitalares, 270%, com o atendimento a casos de câncer no prazo de dois meses diminuindo 32%. A produtividade, bom indicador da saúde econômica, caiu 60% e os centros voluntários de distribuição de cestas básicas viram um aumento de 5 000%.
Na parte boa: aumento de 15% nas matrículas universitárias e de 9% nas aposentadorias. Queda de 44% no desemprego e de 54% na criminalidade.
A dívida bruta sobre o PIB bateu em quase 100% e a taxação em relação ao mesmo produto interno chegou a um aumento próximo de 40%.
Mocassins Prada
Como acontece frequentemente, o governo de Rishi Sunak estava acabando de arrumar a casa, depois de tantas crises, mesmo ao custo de aumentar impostos, um anátema para qualquer conservador.
Sunak também não conseguiu superar o perfil de tecnocrata, se não de multimilionário que usou mocassins Prada para visitar um canteiro de obras e cometeu a estupidez política de sair no meio do dia dedicado aos oitenta anos do histórico Desembarque na Normandia. Nigel Farage, um espertalhão consumado, insinuou que ele não tinha percepção cultural da importância existencial do que foi o Dia D para a nação britânica. Uma forma de dar a entender que, como filho de indianos, Rishi Sunak não tem a conexão vital com um episódio tão fundamental da história do país.
É jogo sujo, mas quem entra na política tem que saber que o adversário vai aproveitar todas as oportunidades para atingir os pontos fracos.
Foi apenas um exemplo de como as coisas deram formidavelmente erradas para o quase ex-primeiro-ministro, nocauteado 24 horas por dia por toda a imprensa. No fim, até o tabloide The Sun, de Rupert Murdoch, manchetou: “Hora de mudar de técnico”. E esclareceu que não era uma referência a Gareth Southgate, o técnico do time inglês.
Muitos leitores reclamaram que votam mesmo, em massa, em Nigel Farage, um direitista populista que parece encomendado em algum laboratório de tão bom que é em falar a seu público natural, independentemente de concordarmos ou não com suas ideias.
Filme de terror
O que acontece no reino importa, mesmo que o velho leão tenha perdido muitos dentes. Foi lá que brotaram as ideias filosóficas e as mudanças de produção do que viriam a ser chamadas de capitalismo. Políticos de todo o mundo, inclusive dos países que não eram colônias britânicas, como o Brasil, olhavam nos séculos XIX e XX para o que acontecia nas ilhas britânicas. Tanto o liberalismo quanto a social-democracia praticamente nasceram lá.
Margaret Thatcher, que fez coisas tão certas e outras tão erradas, encarnou entre 1979 e 1990 a vertente ultraliberal, tipo andar com um livro de Hayek na antológica bolsa, que viria a ser chamada de thatcherismo. Tony Blair foi a face da Terceira Via, a transformação dos antigos partidos socialistas que queriam tomar os meios de produção numa versão mais realista dos fatos.
Ah, os fatos. Uma das mais famosas frases da política mundial foi dita por Harold MacMillan, primeiro-ministro conservador de 1957 a 1963, quando um jornalista perguntou qual era o maior obstáculo a um governante. “Os fatos, caro rapaz, os fatos”, respondeu.
Como o primeiro-ministro eleito, Keir Starmer, vai lidar com eles? Não parece adequadamente equipado, fora do binômio autodestruidor de mais gastos e menos responsabilidade fiscal. Há talvez um certo exagero nas avaliações da direita, como na previsão de Allister Heath no Telegraph: “Espero que vocês gostem de filmes de terror, pois a política britânica está prestes a se tornar uma paisagem infernal e sugadora de almas à altura das mais distorcidas mentes de Hollywood”.
Espetada final
Soa exagerado, mas todo mundo sabe como a vida pode suplantar a ficção. E a única oposição efetiva que vai sobrar pode estar nos ombros, sempre cobertos por paletós chamativos, de Nigel Farage.
Na campanha, ele se concentrou em tirar votos dos tories, seu eleitorado natural. “Nosso objetivo é construir um movimento de massa em favor do bom senso em nosso país”, disse recentemente.
Mas líder do partido Reforma se deu ao luxo de dar mais uma espetada final nos conservadores: “Estão preparados para fazer oposição? Parecem se odiar entre si, estão rachados ao meio”.
Ame-o ou odeie-o, é difícil não reconhecer que nisso tem razão.
O partido mais antigo do mundo está lutando contra a própria obsolescência.