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Quem guarda os guardiões?

Sem a força moral da imparcialidade, tudo se contamina

Por Vilma Gryzinski Atualizado em 4 jun 2024, 12h18 - Publicado em 4 set 2022, 08h00

Cidadãos nobres que pensam como filósofos e lutam como guerreiros, vivem modestamente, repartem tudo com os colegas, são respeitados como os guardiões da cidade e sabem como usar o poder sabiamente nessa missão. Durante algumas décadas, a classe imaginada por Sócrates na utópica Kallipolis, psicografada por Platão, pareceu encontrar sua realização em outra utopia, a americana, em que homens honestos, valorosos, incorruptíveis e heroicamente obstinados formavam a mais legendária força policial do planeta. Inumeráveis filmes consolidaram a lenda: um roubo momentoso, um sequestro indecifrável, um homicídio misterioso começavam a ser desvendados a partir do momento em que os perdidos policiais locais entregavam as investigações a agentes do FBI. Os americanos não precisavam mais se preocupar com um dilema de 2 000 anos — quem guardará os guardiões? —, enunciado em Roma pelo satírico Juvenal num contexto bem mais mundano (o do risco de colocar seguranças bonitões para vigiar a fidelidade das mulheres. O.k., a parte dos bonitões foi acrescentada).

“O FBI, uma instituição legendária, interferiu em um processo que era só dos eleitores”

Até a contranarrativa acabava funcionando a favor. As maquinações do fundador do FBI, J. Edgar Hoover, terminaram por comprovar que nem uma mente maquiavélica como a dele conseguiu desvirtuar sua criatura. As fantasias de um Hoover vestido de mulher, como seu estilo de vida insinuava, parecem ingênuas diante da realidade atual: por decisão judicial, o sistema carcerário federal tem de bancar a cirurgia de mudança de sexo de uma presa trans, homem biológico que se identifica como mulher. Menos ingênuos também são os americanos: nada menos de 79% acreditam que o resultado da eleição presidencial de 2020 teria sido diferente se o FBI não tivesse interferido para desmerecer as histórias cabeludas que emergiam do computador extraviado de Hunter Biden, o filho-problema de Joe Biden. Numa revelação estarrecedora, Mark Zuckerberg disse que agentes do FBI “vieram a nós” a poucos dias da eleição presidencial e avisaram que estava para aparecer uma grande quantidade de “propaganda russa”. Bastou para o Facebook e outras redes sociais, amplamente secundadas pela esmagadora maioria da imprensa, colocarem sob suspeita as primeiras revelações que afloravam do material guardado no computador, indicando negócios propulsionados pelo vínculo de Hunter com o pai, na época vice-presidente dos Estados Unidos.

Este é um dos principais motivos que envolvem com uma névoa de suspeita tudo o que o FBI faz em relação a Donald Trump. Ao perder a aura de imparcialidade e se tornar um agente político interferindo diretamente num processo em que apenas os eleitores deveriam ter da primeira à última palavra, uma instituição legendária introduziu a corrupção em seu seio. Os motivos foram de força maior? Trump foi um horror de presidente? A salvação da pátria estava em jogo? Quando os guardiões perdem a força moral, tudo o que tocam se conspurca, mesmo os mais nobres propósitos. Quaisquer que sejam os documentos guardados ilicitamente por Trump no material confiscado em sua casa na Flórida, sejam segredos nucleares ou detalhes picantes sobre a vida sexual de Emmanuel Macron, os investigadores estão maculados por princípio e eventuais crimes do ex-presidente sempre terão a credibilidade contestada.

Publicado em VEJA de 7 de setembro de 2022, edição nº 2805

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