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Reino desunido: William e Kate são esnobados na Escócia e em Gales

Indiferença e até críticas a visita de boa vontade do futuro rei e sua rainha indicam como Brexit e pandemia azedaram a relação dentro do Reino Unido

Por Vilma Gryzinski 9 dez 2020, 08h24

A Grã-Bretanha vive momentos históricos, com o acordo sobre o Brexit prestes a ser decidido com a União Europeia e as cenas emocionais do pioneiro início da vacinação em massa contra a Covid-19 arrancando algo parecido com lágrimas, num programa de televisão, de Matt Hancock, o ministro da Saúde.

Com apostas tão altas em jogo, por que uma visita nada excepcional de William e Kate para agradecer os trabalhadores da linha de frente seria tão mal recebida nos círculos oficiais da Escócia e do País de Gales?

Enfiando o punhal até o fundo, a primeira-ministra da Escócia, Nicola Sturgeon, declarou gelidamente: “A visita real é uma questão da casa real e qualquer questão a respeito deve ser dirigida a ela”.

“O governo escocês foi consultado sobre a intenção da visita e procuramos deixar claras as restrições em vigor na Escócia”.

Tradução: o príncipe e a mulher estavam infringindo a proibição a viagens não essenciais – embora para eles, evidentemente, as visitas de boa vontade sejam parte de seu trabalho como membros da família real.

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Restrições similares foram feitas no País de Gales, onde as imagens quase solitárias de William e Kate retrataram a má vontade com que foram recebidos.

“Eu preferiria que ninguém fizesse visitas desnecessárias”, espetou o secretário da Saúde de Gales, Vaughan Gheting.

Para entender um pouco as relações complexas entre os quatro integrantes do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte é preciso fazer um voo desde o presente tumultuado até o passado cruento.

No presente, Boris Johnson, Brexit e pandemia são os três fatores que alimentam a animosidade, declarada ou implícita, em relação à Inglaterra, a potência dominante que conquistou os outros componentes, pela espada ou pela hegemonia cultural e econômica.

Desde 1999, as nações que constituem o reino têm parlamentos e governos autônomos e tomaram suas próprias decisões  nem sempre harmônicas, sobre como administrar a crise do novo coronavírus.

Único ponto em comum: todas acham que Boris Johnson teve um comportamento desordenado e caótico durante a pandemia. Em compensação, até os ingleses – como ressaltaram escoceses com alegria – aprovaram a conduta de Nicola Sturgeon, irritantemente severa, embora mais coerente ao explicar à população por que tinha que fazer tantos sacrifícios.

A popularidade da primeira-ministra traz uma encrenca adicional. Ela é do partido que defende a independência da Escócia e quer um novo referendo, já no ano que vem.

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Em 2014, 55% dos escoceses votaram por continuar no Reino Unido e isso deveria ter encerrado a questão. 

Como o assunto envolve nacionalismo, ressentimentos históricos e outras pulsões poderosas, os independentistas não deixam que fique guardado na geladeira.

Alegam que o Brexit mudou estruturalmente o reino e que os escoceses têm direito a uma nova votação – pesquisas mais recentes indicam que, agora, 51% favoreceriam a independência, embora obviamente seja prematuro concluir que este seria o resultado.

Os dois países selaram a união mútua em 1707, com leis aprovadas pelos respectivos parlamentos. Em termos monárquicos, já tinham um mesmo rei, por questões dinásticas, desde 1603.

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A ideia de criar uma identidade britânica começou a ser construída aí, nem sempre com muito sucesso. Persistem, entre os naturais ressentimentos dos mais fracos pelos mais fortes, as lembranças amargas dos “deslocamentos” populacionais, a expulsão de moradores das Terras Altas, as Highlands do norte da Escócia, para abrir caminho aos novos donos ingleses.

Um dos papéis mais importantes da monarquia britânica é justamente enfatizar essa identidade conjunta. O herdeiro do trono, por exemplo, tem o título de príncipe de Gales, a nação conquistada em sua inteireza por Eduardo I, no século XIII.

A série The Crown mostrou, com o exagero habitual, como o príncipe Charles aprendeu alguma coisa de gaélico e simpatizou com a preservação da identidade galesa durante o período em que foi preparado para assumir o título tão importante.

Charles e a mãe também cultivam sistematicamente os laços da família real com a Escócia, onde fica o castelo predileto da rainha. A mãe de Elizabeth era escocesa, o que aumenta a simpatia da opinião pública pela irretocável monarca de 94 anos.

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Quando – e se – a rainha for para as Terras Altas da posteridade, essa simpatia não será automaticamente transferida.

Charles e o filho têm que incentivar os sentimentos positivos e os elos em comum. A visita de William com Kate, os membros mais populares da família depois da rainha, faz parte desse grande e permanente projeto de relações públicas.

A recepção fria, quase hostil, que tiveram mostra como ainda existe muito trabalho pela frente e como crises políticas influenciam a monarquia e vice-versa. 

Que função teria a monarquia, que opera num campo onde simbolismo é tudo, num reino desunido, onde seus componentes agregados se descolassem da construção política que levou séculos para ser montada e pode demorar muito menos para ser desconstruída?

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Também seria muito melancólico um reino sem prodígios como David Hume (empirismo), Adam Smith (liberalismo), James Watt (revolução industrial via máquina a vapor), Alexandre Graham Bell (telefone), Alexander Fleming (penicilina), Arthur Conan Doyle (Sherlock Holmes) ou Sean Connery (James Bond), para ficar apenas num punhado dos escoceses mais famosos.

Pandemia e Brexit ao mesmo tempo são problemas de dimensão tremenda para qualquer governo. Mas “perder” a Escócia já entra na categoria de catástrofes históricas.

Por mais que Boris Johnson se recuse – e cabe ao primeiro-ministro pedir ao Parlamento um novo referendo -, Nicola Sturgeon não pensa em outra coisa o tempo todo.

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