A Grã-Bretanha vive momentos históricos, com o acordo sobre o Brexit prestes a ser decidido com a União Europeia e as cenas emocionais do pioneiro início da vacinação em massa contra a Covid-19 arrancando algo parecido com lágrimas, num programa de televisão, de Matt Hancock, o ministro da Saúde.
Com apostas tão altas em jogo, por que uma visita nada excepcional de William e Kate para agradecer os trabalhadores da linha de frente seria tão mal recebida nos círculos oficiais da Escócia e do País de Gales?
Enfiando o punhal até o fundo, a primeira-ministra da Escócia, Nicola Sturgeon, declarou gelidamente: “A visita real é uma questão da casa real e qualquer questão a respeito deve ser dirigida a ela”.
“O governo escocês foi consultado sobre a intenção da visita e procuramos deixar claras as restrições em vigor na Escócia”.
Tradução: o príncipe e a mulher estavam infringindo a proibição a viagens não essenciais – embora para eles, evidentemente, as visitas de boa vontade sejam parte de seu trabalho como membros da família real.
Restrições similares foram feitas no País de Gales, onde as imagens quase solitárias de William e Kate retrataram a má vontade com que foram recebidos.
“Eu preferiria que ninguém fizesse visitas desnecessárias”, espetou o secretário da Saúde de Gales, Vaughan Gheting.
Para entender um pouco as relações complexas entre os quatro integrantes do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte é preciso fazer um voo desde o presente tumultuado até o passado cruento.
No presente, Boris Johnson, Brexit e pandemia são os três fatores que alimentam a animosidade, declarada ou implícita, em relação à Inglaterra, a potência dominante que conquistou os outros componentes, pela espada ou pela hegemonia cultural e econômica.
Desde 1999, as nações que constituem o reino têm parlamentos e governos autônomos e tomaram suas próprias decisões nem sempre harmônicas, sobre como administrar a crise do novo coronavírus.
Único ponto em comum: todas acham que Boris Johnson teve um comportamento desordenado e caótico durante a pandemia. Em compensação, até os ingleses – como ressaltaram escoceses com alegria – aprovaram a conduta de Nicola Sturgeon, irritantemente severa, embora mais coerente ao explicar à população por que tinha que fazer tantos sacrifícios.
A popularidade da primeira-ministra traz uma encrenca adicional. Ela é do partido que defende a independência da Escócia e quer um novo referendo, já no ano que vem.
Em 2014, 55% dos escoceses votaram por continuar no Reino Unido e isso deveria ter encerrado a questão.
Como o assunto envolve nacionalismo, ressentimentos históricos e outras pulsões poderosas, os independentistas não deixam que fique guardado na geladeira.
Alegam que o Brexit mudou estruturalmente o reino e que os escoceses têm direito a uma nova votação – pesquisas mais recentes indicam que, agora, 51% favoreceriam a independência, embora obviamente seja prematuro concluir que este seria o resultado.
Os dois países selaram a união mútua em 1707, com leis aprovadas pelos respectivos parlamentos. Em termos monárquicos, já tinham um mesmo rei, por questões dinásticas, desde 1603.
A ideia de criar uma identidade britânica começou a ser construída aí, nem sempre com muito sucesso. Persistem, entre os naturais ressentimentos dos mais fracos pelos mais fortes, as lembranças amargas dos “deslocamentos” populacionais, a expulsão de moradores das Terras Altas, as Highlands do norte da Escócia, para abrir caminho aos novos donos ingleses.
Um dos papéis mais importantes da monarquia britânica é justamente enfatizar essa identidade conjunta. O herdeiro do trono, por exemplo, tem o título de príncipe de Gales, a nação conquistada em sua inteireza por Eduardo I, no século XIII.
A série The Crown mostrou, com o exagero habitual, como o príncipe Charles aprendeu alguma coisa de gaélico e simpatizou com a preservação da identidade galesa durante o período em que foi preparado para assumir o título tão importante.
Charles e a mãe também cultivam sistematicamente os laços da família real com a Escócia, onde fica o castelo predileto da rainha. A mãe de Elizabeth era escocesa, o que aumenta a simpatia da opinião pública pela irretocável monarca de 94 anos.
Quando – e se – a rainha for para as Terras Altas da posteridade, essa simpatia não será automaticamente transferida.
Charles e o filho têm que incentivar os sentimentos positivos e os elos em comum. A visita de William com Kate, os membros mais populares da família depois da rainha, faz parte desse grande e permanente projeto de relações públicas.
A recepção fria, quase hostil, que tiveram mostra como ainda existe muito trabalho pela frente e como crises políticas influenciam a monarquia e vice-versa.
Que função teria a monarquia, que opera num campo onde simbolismo é tudo, num reino desunido, onde seus componentes agregados se descolassem da construção política que levou séculos para ser montada e pode demorar muito menos para ser desconstruída?
Também seria muito melancólico um reino sem prodígios como David Hume (empirismo), Adam Smith (liberalismo), James Watt (revolução industrial via máquina a vapor), Alexandre Graham Bell (telefone), Alexander Fleming (penicilina), Arthur Conan Doyle (Sherlock Holmes) ou Sean Connery (James Bond), para ficar apenas num punhado dos escoceses mais famosos.
Pandemia e Brexit ao mesmo tempo são problemas de dimensão tremenda para qualquer governo. Mas “perder” a Escócia já entra na categoria de catástrofes históricas.
Por mais que Boris Johnson se recuse – e cabe ao primeiro-ministro pedir ao Parlamento um novo referendo -, Nicola Sturgeon não pensa em outra coisa o tempo todo.