Tudo embolado: incertezas nas primárias para presidência da Argentina
É claro que tudo tem que ser com emoção no país em que e até a candidatura dos principais partidos está em dúvida
Quais as certezas desse domingo, quando os argentinos votam no seu peculiar sistema de primárias, pelo qual todos os eleitores têm direito a escolher os candidatos de cada partido ou coligação?
Certeza mesmo é só uma: Javier Milei vai ser o mais exótico candidato à presidência, uma vez que ele é o criador, inspirador e promotor do partido que montou do nada, chamado A Liberdade Avança.
Como é o único que concorre por sua chapa, também vai ser o mais votado. Na maioria das pesquisas, aparece aproximadamente com 23% dos votos.
A ilusão – mesmo falsa – de certeza dada pelas pesquisas desmorona em tudo mais que importa. O Juntos Pela Mudança, frente oposicionista que levou à eleição de Mauricio Macri (e do qual poucos querem ouvir falar) em 2015, tem dois candidatos fortes, Horacio Rodríguez Larreta, prefeito de Buenos Aires, e a senadora Patricia Bullrich.
Dependendo da pesquisa, cada um aparece à frente. A maioria favorece Larreta, embora com poucos animadores 14% dos votos, em geral. Ele não tem o apelo nem o estilo dos políticos mais conhecidos – e talvez seja seu trunfo na próxima etapa eleitoral, o primeiro turno, em 22 de outubro, considerando-se os altos índices de rejeição aos líderes das duas tendências, de esquerda e de direita, Cristina Kirchner e Macri, ambos ausentes da disputa.
A coalizão peronista até mudou de nome, de Frente de Todos para União pela Pátria – sempre um sinal de que as coisas não vão bem. Cristina enrolou até o último momento para definir quem seria seu candidato – puro teatro, escolheu quem sempre quis, Wado de Pedro, o ministro do Interior que continua no governo, apesar de detonar o patético Alberto Fernández. Os jantares sigilosos com o ministro da Economia, Sergio Massa, o mais cotado na categoria, deram em nada. Massa não deve ter ficado nada feliz por ser plantado na cara de pau.
Não ter o apoio de Cristina não é seu único problema.
Concorrer a presidente com 114% de inflação nos últimos doze meses e 97% de taxa de juro soa quase absurdo, mas essa é a Argentina e Massa é o que se tem para o momento, com perfil e até eleitores próprios no saco de gatos do peronismo. O embaixador no Brasil, Daniel Scioli, apoiado pelo presidente (o tipo de apoio que pouca gente quer), teve que entrar na justiça para disputar as PASO, sigla de Primárias Abertas, Simultâneas e Obrigatórias, um sistema que o kirchnerismo, depois de apoiar, tentou sabotar de múltiplas maneiras.
As PASO são interessantes, e até cheias de emoção, mas o que conta mesmo é a eleição final. E aí o cenário fica mais nebuloso ainda. O maior fator de incerteza é proporcionado por Javier Milei e a mensagem anarcocapitalista com que conquistou uma fatia surpreendente do eleitorado, desesperado com “tudo isso que está aí”, seja de direita, seja de esquerda.
Em princípio, ele prejudica a oposição: praticamente todos os votos que vão para ele serão tirados de Larreta ou de Patricia Bullrich, a senadora cujo sobrenome muitos brasileiros identificam com o conhecido shopping center de Buenos Aires, construído numa casa de leilões de gado que foi de seu bisavô.
Uma pesquisa divulgada pela Bloomberg dá um resultado em que as três forças principais estão literalmente empatadas: Juntos pela Mudança, somando os votos de Larreta e Bulrrich, 29,1%; Frente de Todos, 27,4%; A Liberdade Avança de Javier Milei, 27,6%.
Tradução: não há garantias de quem serão os dois candidatos que irão ao segundo turno, em 19 de novembro.
Há pesquisas em que Milei aparece com bem menos, na faixa dos 15%, embora continue o empate técnico entre Juntos pela Mudança (32,2%) e a Frente de Todos (30,1%).
A grande questão, assim, é se, na ausência de uma surpresa épica que colocasse Milei no segundo turno, ele faria alianças para apoiar a oposição no segundo turno. O que cobraria para isso?
Milei não tem posições conciliáveis com nenhuma força política, a começar por sua proposta principal, a dolarização, inconcebível num país como a Argentina. “Suas propostas poderiam gerar uma tragédia social de uma dimensão que nem sequer nós, argentinos com várias décadas de vida, já vimos”, escreveu no Infobae, lugubremente, o analista Ernesto Tenenbaum.
Mas se eleger 20% da Câmara dos Deputados, terá um instrumento fortíssimo para pressionar qualquer governo (na hipótese contrária e quase surrealista, se fosse eleito presidente, não teria a menor condição de governar com apenas essa fatia do legislativo).
Milei não é bobo nem tosco – muito longe disso. Apresentou ontem a um grupo de elite seu programa econômico, um projeto de fazer brilhar os olhos dos visionários, com “um conjunto de reformas estruturais que farão a Argentina em cinquenta anos voltar a ser uma das potências mundiais”. Citou como exemplo o “caso emblemático da Irlanda, que passou de ser um dos países mais pobres da Europa a ter um PIB per capita de 120 mil dólares quando iniciou suas reformas estruturais”.
A chave é fazer reformas em três ondas: do Estado, com cortes radicais de gastos, principalmente nos benefícios “onde há ingerência dos políticos, que se escondem atrás dos vulneráveis”; depois modernização do mercado trabalhista, seguida de uma reforma monetária e financeira. A partir dessas mudanças, será possível “abrir a economia de forma unilateral” e promover excepcionalmente o bem-estar da população.
É um assunto, obviamente, fascinante, que deveria ser discutido a fundo – e não só na Argentina. Mas vejam um exemplo do nível dos ataques a Milei, dado por um prefeito do interior, o cristinista Pablo Zurro, que disse o seguinte sobre o disruptivo candidato: “O problema é que é um masturbador compulsivo. Por isso, fala cretinices”.
Este é o nível da coisa, e só vai piorar à medida em que as eleições ficam mais perto e os peronistas imaginam a pior das hipóteses, perder o poder. Episódios violentos, como o ataque piqueteiro – pagos pelo governo, anote-se – à sede do poder legislativo da província de Jujuy, de oposição ao governo central, expõem a volatilidade de um país que entra na final do processo eleitoral com inflação estupefaciente e 90% de insatisfação com a situação nacional. Vai ser uma eleição daquelas.