O Brasil ostenta, indiscutivelmente, a maior frota de carros blindados do mundo, com números impressionantes, que variam de 116 000 a 300 000 unidades, dependendo da fonte. Nenhum outro país chega sequer perto dessa marca. Surpreendentemente, nações com históricos de violência e crime organizado, como México e Rússia, possuem frotas menos expressivas que a brasileira.
A proliferação de carros blindados é uma resposta tanto à realidade da violência quantificada em números alarmantes quanto à percepção generalizada de insegurança que permeia a sociedade brasileira. As consequências da violência são avassaladoras, afetando profundamente a sociedade na forma de desemprego, disparidades sociais e econômicas, queda na arrecadação de impostos e precariedade nos serviços públicos — e essas são apenas algumas das consequências.
Além disso, a violência provoca a privatização da segurança, situação em que apenas aqueles que podem arcar com carros blindados e seguranças pessoais se sentem protegidos, ampliando o abismo entre os privilegiados e os que enfrentam o caos do cotidiano sem proteção. A violência é tanto um dos mais graves sintomas da desigualdade quanto uma de suas causas.
Em 2022, o Brasil registrou 47 398 mortes violentas intencionais, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o que equivale a quase 130 mortes por dia. A média, embora represente uma redução pequena sobre a taxa diária de 2021 (132), é a mais baixa desde 2011. No primeiro semestre deste ano, o país contabilizou 18 700 mortes violentas, uma média de quase 103 por dia, em comparação com 20 400 no mesmo período do ano anterior.
“A violência exige soluções sistêmicas que envolvam um plano abrangente de reconstrução da segurança pública”
A tendência de queda observada em 2022, com uma redução de 1,8% nos homicídios dolosos, é um sinal positivo, mas os números continuam chocantes. Denunciar essa situação é importante, mas não suficiente. A violência no Brasil exige soluções sistêmicas que envolvam um plano abrangente de reconstrução da segurança pública unindo os três poderes da União e os entes federativos. Tal processo deve se basear em análises, pesquisas e aplicação de tecnologia de ponta, com orçamentos específicos e metas bem definidas.
A redução das mortes violentas, o que vem ocorrendo desde 2021, precisa ser acompanhada da restauração da sensação de segurança nas ruas e nos transportes públicos. E isso pode ser alcançado por meio de policiamento constante e visível, uso de tecnologia para identificação de criminosos, análise estatística de ocorrências criminais, inteligência policial e revitalização de áreas negligenciadas pelo poder público, incluindo melhorias na iluminação.
Enquanto uma abordagem sistêmica da violência não se concretizar e a cultura do crime persistir, o Brasil seguirá conhecido como “o país dos carros blindados”. Seria até irônico sugerir a criação de um “carro popular blindado” pelo governo.
A sociedade e o governo não podem esperar que a situação melhore por si. A esperança não é estratégia adequada para enfrentar um problema que pode se agravar ainda mais, como comprovam os eventos recentes na Bahia, no Rio de Janeiro e na Baixada Santista. Enquanto isso, as vendas de carros blindados continuarão a aumentar. Pois, como disse o político irlandês John Philpot Curran, no século XVIII, “a condição sob a qual Deus deu liberdade ao homem é a eterna vigilância”.
Publicado em VEJA de 6 de outubro de 2023, edição nº 2862