Desde as eleições de outubro, o novo governo emite sinais e ruídos contraditórios. Tal fato se comprova pela assertividade e abundância de declarações polêmicas. Em vez de prevalecer o equilíbrio e a prudência, as vibrações eleitorais seguem predominando.
O fenômeno tem duas consequências principais. A primeira é gerar impasses, dúvidas e incertezas. A segunda é causar a impressão de que o novo governo busca uma espécie de “retroprogresso”, ou seja, uma projeção rumo a um passado que não existiu.
No plano imagético, o retroprojeto se baseia em outro conceito complexo, este de Zygmunt Bauman: o da retrotopia, que é uma desconfiança do presente aliada a um imaginário utópico do passado. Passado do qual, como narrativa construída, se selecionam partes, visando compor uma imagem idealizada. E que só existe como imaginação e é motivada pela saudade do que não fomos.
Em política, a retrotopia é uma atitude recorrente. Só mudam os atores e o cenário. O governo Bolsonaro também embarcou em uma viagem utópica, ao sonhar com um regime militar que não existiu. Assim como muitos, recentemente, pediram uma intervenção militar que não viria.
“Corremos o risco de ficarmos prisioneiros de um limbo, uma espécie de purgatório em que descuidamos da realidade”
A retrotopia projeta um sucesso do passado composto de pedaços de verdades, de meias verdades e de mentiras sinceras. No entanto, a nostalgia do que não fomos é tão nefasta quanto a aspiração a sermos o que ainda não podemos ser.
Como disse Montaigne, “a sabedoria presta um bom serviço aos que subordinam seus desejos às suas capacidades”. Prometer o que não pode entregar é uma ferida autoinfligida que, com o passar do tempo, só vai piorar.
Outra forma de se ferir é não entender, de forma clara, as razões que decretaram os acontecimentos. No caso, as eleições presidenciais. Por que chegamos aqui? Esquecemos que, nos últimos vinte anos, o país viveu uma vertiginosa sequência de acontecimentos políticos, econômicos e sociais que moldaram uma nova realidade?
As duas contradições — a ferida autoinfligida e a não leitura da realidade — cobram um preço alto: o atraso nas realizações ou até mesmo o fracasso de propósitos. Entre uma contradição e outra, corremos o risco, como nação, de ficarmos prisioneiros de um limbo, uma espécie de purgatório em que descuidamos da realidade tentando viver em uma pararrealidade gelatinosa.
Posto o dilema do momento, pergunta-se: seria o retroprogresso inexorável, tal qual uma caminhada ao abismo político? Seguramente, não. Em política nada é inexorável. Tudo é relativo. Tudo pode mudar — para melhor ou para pior. Depende das decisões dos atores institucionais relevantes na cena política. E das escolhas que esses atores vão fazer.
O novo governo tem na história dos últimos vinte anos bons e maus exemplos de políticas públicas. Sabe também que não existe mais o monopólio das manifestações nas ruas. E sabe ainda que os poderes Judiciário e Legislativo são mais independentes e atuantes do que antes. Enfim, são outros tempos. Bem mais complexos e que exigem doses industriais de pragmatismo.
Publicado em VEJA de 15 de fevereiro de 2023, edição nº 2828