O caminhar em Brasília se assemelha a cruzar um rio pedregoso, com pedras soltas, algumas limpas e outras com lodo, escorregadias. Exige do caminhante especial atenção para driblar os percalços. Toda atenção é necessária, caso algum interesse importante esteja em jogo. Pois, para muitos, a política é um negócio.
As circunstâncias do momento são especiais. A combinação do debate da reforma tributária com o ano eleitoral pode abrir a temporada de caça sobre o setor privado. Em tempos de eleição, as propostas de reforma tributária ganham uma dimensão ainda mais intensa, com cada grupo tentando alinhar propostas às próprias demandas.
O governo, buscando aumentar a arrecadação para financiar suas políticas públicas e seus programas eleitorais, torna-se um caçador implacável. A necessidade de apresentar resultados tangíveis e a pressão para equilibrar as contas públicas incentivam uma busca agressiva por novas fontes de receita, muitas vezes tendo o setor privado como alvo principal. Os caçadores, porém, não são apenas os governantes em busca de recursos adicionais, são também os vendedores de soluções que prometem salvar os perseguidos.
Essa dinâmica cria um ambiente de incerteza e tensão para o setor privado, que se vê encurralado entre a necessidade de contribuir para o Fisco e a pressão para encontrar maneiras legais de minimizar tal impacto. Em meio a esse cenário, os contribuintes precisam estar mais preparados do que nunca para lidar com as exigências fiscais, enquanto tentam influenciar o debate de forma a proteger seus interesses e garantir a sustentabilidade de seus negócios.
Rumores indicam que setores privados poderão ser amassados nas discussões no melhor estilo “criar dificuldades para oferecer facilidades”. O assunto é sério e merece a atenção dos Poderes e das lideranças do Congresso. A questão tributária é uma das mais dolorosas do país. A maioria paga muitos tributos, enquanto uma minoria se beneficia de isenções e facilidades. A indústria nacional é penalizada com uma competição injusta devido a um sistema tributário caótico.
“Setores privados poderão ser amassados no melhor estilo ‘criar dificuldades para oferecer facilidades’ ”
A reforma é mais do que necessária, mas ter a regulamentação aprovada a toque de caixa e, quem sabe, visando apenas gerar caixa é, como disse em texto anterior, uma temeridade. Taxar, por exemplo, as exportações é uma insanidade e um benefício para quem compete conosco no comércio internacional.
Enfim, o debate em torno da reforma tributária poderá se transformar em um enredo de Fellini. Com movimentos incompreensíveis e resultados imprevisíveis, como o final de E La Nave Va, em que o jornalista Orlando e um rinoceronte ficam perdidos em um oceano de plástico cercado por técnicos que produzem fumaça.
Essa comparação cinematográfica não é meramente estética. Ressalta um problema profundo que pode acontecer em um debate açodado e pouco compreensível. Não podemos deixar que a reforma tributária se transforme em temporada de caça do contribuinte, que é quem, no final, paga a conta.
Publicado em VEJA de 5 de julho de 2024, edição nº 2900