O Brasileiro em que Pelé não foi Pelé
Em 71, o Rei marcou apenas um gol, no empate entre Corinthians e Santos. Comentarista do Futuro foi até lá para conferir se não era um impostor em campo
Êste acento circunflexo grafado no pronome que abre o texto será o primeiro e último que usarei até o ponto final. Essa e outras esquisitices que vocês, queridos leitores de 1971, venham a notar na redação creditem à Reforma Ortográfica que daqui a dois meses será sancionada pelo Médici – presidente que mata mesmo, inclusive acentos diferenciais. Mas que ninguém ouse tirar o acento agudo da oxítona “Pelé”, mesmo o jogador já sendo diferenciado desde criança. O Rei, revelo a vocês, encerrará a carreira em 1977 somando incríveis 1.282 gols em 1.366 jogos. Mas o tento anotado ontem à noite, neste empate de 1 a 1 entre Corinthians e Santos, pasmem, será o único que marcará em todo este Campeonato Brasileiro. Isso mesmo: Pelé chegará ao fim da principal competição nacional (rebatizada este ano) com um mísero gol em 21 jogos com sua presença real em campo. Fiz questão de embarcar na máquina do tempo até este jogo no Pacaembu para conferir com meus olhos, pois sempre foi grande a minha suspeita de que é um sósia, um impostor, que tem vestido a camisa 10 santista. Vou pôr essa história nos eixos. Sim, pôr com acento. Este o Médici não vai matar.
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Mal cheguei ao estádio, começaram os sinais. Pedi uma Coca na lanchonete e o rapaz do balcão me serviu outro refrigerante. Reclamei com veemência (outro acento que sobreviverá à linha dura): “Ei! Essa Coca-Cola é Pepsi!”. Elementar, meu caro leitor: o cara achou que eu não ia perceber. As aparências enganam os menos atentos. Mas será mesmo possível que, após o Tri do ano passado no México e a despedida em junho da Seleção, o “Negão” (apelido carinhoso do Rei) resolveu tirar um ano sabático e pôs (com acento, sempre) outro sujeito em seu lugar? Trata-se então de um clone, sabem do que se trata, né? Não, vocês ainda não conhecem – mas pesquisem, pois clonagem existe desde 1903 e no futuro, de onde venho, a galera toda vai saber o que é. Digamos então que podemos estar vendo com a 10 do Santos um… Avatar! Também estou falando grego? Pô, esta palavra vem do sânscrito, é milenar! Ok, vou simplificar pra todo mundo: será possível que o Rei foi descansar e pôs uma “Pepsi” em campo?
Sorte que no velho Pacaembu podemos ficar bem próximos aos jogadores – no futuro, sinto informar, isso será raro. Me posicionei o mais perto possível à entrada dos times. Quando o Santos pintou pelo túnel, começou a gritaria na arquibancada: “Pelé! Pelé!”. Eu fui pro lado oposto, tipo um acento grave – que a partir de dezembro vai indicar apenas a crase, perdendo as funções na chamada sílaba subtônica (isso sim é falar grego, rê-rê). Berrei: “Love! Love! Love!”. Neste instante, percebi um leve movimento do pescoço e do olhar de 360° do Rei na direção de onde eu estava. Tenho quase certeza que ele ouviu e gostou das minhas palavras, uma ode à fraternidade mundial, pois daqui a alguns anos, vocês hão de conferir, vai usá-las num estádio lotado, em seu discurso de adeus ao futebol americano. Sim, é outro ‘spoiler’, ou segredo do futuro: Pelé deixará o Brasil em 1974 pra encerrar sua carreira no New York Cosmos, clube dos Estados Unidos. Será o mais importante pontapé inicial que dará em toda a sua história com a bola.
Da ‘arquiba’, tento prestar atenção em cada detalhe. Por exemplo: “esse Pelé” lá embaixo, ‘fake’ ou não, entrou em campo com o pé esquerdo… É assim que o craque adentra os gramados? Lembro então que, sobre isso, alguém um dia escreveu ou escreverá que o Rei entra pra jogar sempre do mesmo jeito, “com o coração”! Já o Timão saiu do túnel com a calculadora no bolso, fazendo contas, pois o empate seria e foi o bastante pra garantir sua vaga na segunda fase do Brasileiro. O jogo começa e sigo de olho no suposto Rei do Futebol. O gingado é o mesmo. O domínio absoluto da bola também. Se de fato este sujeito é uma farsa, onde teriam encontrado substituto com o mesmo estilo inconfundível, a explosão incomparável e o talento ímpar?
São apenas algumas das qualidades que o farão, podem anotar, ser eleito o melhor jogador do século (pela Fifa, no ano 2000) e Atleta do Século (isso daqui a 10 anos, pelo jornal L’Equipe). Mas como então explicar que já tenham se passado 17 rodadas do campeonato e ele continue em branco, sem estufar as redes? Ok, só jogou 14 partidas, mas isso não diminui o espanto. Sem falar que, há umas quatro semanas, vocês sabem, conseguiu perder um pênalti contra o Cruzeiro, na vitória santista por 1×0. Um Pelé que não faz gols e perde pênalti? Tudo soava muito esdrúxulo – proparoxítona que também escapará do “acentocídio” no fim do ano.
O primeiro tempo foi acirrado, com lances de perigo para os dois lados do tradicional Clássico Alvinegro, mais antigo confronto entre os grandes clubes de São Paulo, disputado desde 1913. Quase 65 mil pessoas escolheram o jogo como seu programa para a noite de sábado. Rivellino, talvez inspirado pelo nascimento de sua primeira filha, Roberta, na sexta-feira, aprontava das suas. O santista Edu também. Veio o segundo tempo, ainda 0x0, e a cada minuto eu ficava mais convencido de que aquele negro forte e veloz vestindo a camisa 10 do Santos não era o nosso velho e bom Edson Arantes do Nascimento. Isso até os 28 minutos, quando o Rei arrumou a bola para bater uma falta e partiu pra ela com aquela cadência só dele. Golaço: 1 a 0 Santos. O que acentua (de forma aguda!) a situação é que, até o fim do Brasileiro, vai ficar por aí mesmo… Nadica de gol do Rei nos próximos sete jogos pelo Santos. A vitória era fundamental para o Onze da Vila Belmiro mas, já no finzinho, aos 45, veio a patada atômica que decretou o empate. Sim, do outro lado estava Riva, e este posso garantir que não é um farsante. Seria impossível encontrar alguém com um bigode assim…
Pelé sempre teve vocação especial para marcar gols no rival de mesmas cores. Ao fim de sua história nos campos, já serão 50, fazendo do Curingão a maior vítima do Rei. Até 2021, de “quando” venho, anotem: os rivais já terão se enfrentado 341 vezes, com 133 vitórias do time do Parque São Jorge e 109 do alvinegro praiano; 99 empates. Apenas uma vez vão decidir o Brasileiro, em 2002, numa final de dois jogos em que… Hummmm… Fiquei na dúvida (outra paroxítona sobrevivente!) se conto a vocês essa informação do futuro ou não… Vou deixar em segredo, mas posso adiantar que a final será marcada por um lance que entrará para o dialeto do futebol: pedalada! O protagonista, infelizmente, vai derrapar feio no fim de sua carreira, envolvido e condenado num caso de estupro na Itália. Pedalada pra trás…
Pelé e gol são quase sinônimos. Em 1959, ainda garoto, fez 126 gols, sua melhor performance em artilharia. Pois até o fim deste ano vai ter anotado em seu caderninho apenas 30, tornando este 1971 a sexta pior temporada de sua carreira. Mas observem: com números ainda menores estão 1956 (era a estreia, jogou pouco, não conta!); 1974 (também terá seu álibi, pois será a despedida de Pelé do futebol Brasileiro, marcando 20 vezes); e os três derradeiros (75-76-77), quando somará no máximo 26 gols, em 76, mas num calendário com menos jogos. Considerando estes senões, 1971 será mesmo eternamente o ano mais estranho do Rei. Mas, adianto a todos, pouco se falará sobre isso no futuro. Estranho também.
1971 será famoso por outros marcos, como a inauguração do Walt Disney World e do parque Magic Kingdom (já ouviram falar?), pela safra de discos que mudarão a história da música mundial, a estreia no México do seriado de TV “Chaves” e por um motivo bizarro: ser considerado e anunciado pela ONU como o “Ano Internacional da Luta contra o Racismo e a Discriminação Racial”. Por que bizarro? Daqui a 40 anos, sinto dizer, ainda estaremos nesta luta e encontraremos pessoas que não conseguem entender a vida, ou se fazem de sonsos, mais ou menos como o Quico ou o Seu Madruga do tal programa mexicano. Vocês ainda vão me entender… Assim espero.
Não satisfeito com minha investigação, terminado o jogo dei um jeito de descer até os vestiários. De longe, avistei Pelé, naquele naturalismo comum nesses anos 70, só ele e a toalha branca, mas atendendo a todos, sorrindo muito, um monarca em simpatia e solicitude… Tive então a certeza de que é ele mesmo, e não um sósia impostor, atuando no Brasileiro este ano. E entendi que a escassez de gols deve ser causada pelas emoções que viveu há meros três meses, no eterno 18 de julho, em sua partida de despedida da Seleção, contra a Iugoslávia. Aquele coro de quase 140 mil pessoas no Maracanã, entoando “Fica! Fica! Fica!” e levando o craque às lágrimas, deve ter abalado o maior de todos os craques. Não parece, mas ele também é humano.
Uma semana antes, Pelé já vivera emoção semelhante no Morumbi, na primeira despedida, contra a Áustria, marcando inclusive um gol, o último dos seus 77 com a camisa canarinho. Concluí e divido com vocês que é o lado emocional que está fazendo marcação cerrada sobre o Rei. Em 2021, de quando venho, uma grande estrela do esporte mundial, rainha da ginástica olímpica, vai ser sincera ao abandonar a competição e expor sua angústia diante da expectativa mundial. Deixei o futuro com a Saúde Mental dos atletas em pauta no botequins. Pelé, ao que parece, prefere guardar a dor pra si. Certamente por entender que não pode demonstrar fraqueza aos milhões súditos pelo mundo. Mais pressão… Assim como os acentos da língua portuguesa, o mundo muda, mas sabemos que coração de Rei é assim. Gigantesco –paroxítona sem circunflexo, por favor.
FICHA TÉCNICA
Corinthians 1 x 1 Santos
Data: 30 de outubro de 1971
Estádio: Paulo Machado de Carvalho, o Pacaembu
Local: São Paulo
Árbitro: Dulcídio Wanderley Boschillia
Público: 64.693 pagantes
Renda: Cr$ 423.693,00 (Cruzeiros)
Corinthians: Sídnei; Miranda (Zé Maria), Baldochi, Luís Carlos, Pedrinho, Tião Corinthians, Lindóia, Rivellino, Nélson Lopes (Marco Antônio), Mirandinha e Aladim. Técnico: Baltazar
Santos: Joel Mendes; Orlando, Ramos Delgado, Oberdan, Rildo, Clodoaldo, Lima, Davi, Mazinho (Douglas), Pelé e Edu. Técnico: Mauro Ramos de Oliveira
Gols: Pelé aos 28 e Rivelino aos 45 do 2º Tempo.
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