Foi preciso embarcar numa carroça de jegues pra não chegar atrasado ao certame de ontem em Moça Bonita, que reuniu as “Feras do João Saldanha” e o alvirrubro fabril dessas bucólicas cercanias de Bangu. Por falta de dados geográficos precisos, foi difícil regular a máquina do tempo para deixar 2021, de onde venho, leitores, e chegar ao subúrbio carioca neste turbulento 1970, ano de Copa. Mas não escolhi este amistoso bizarro – quem teve a brilhante ideia de marcar jogo do Brasil contra o Bangu a menos de três meses do Mundial no México? – ao acaso. Deixei o futuro, 51 anos adiante na história do futebol, em meio a um episódio de embate entre o treinador da seleção brasileira e o Presidente da República que vai lembrar o que a torcida brasileira tem acompanhado nas últimas semanas: a queda-de-braço que põe frente à frente Saldanha, técnico do escrete brasileiro, e o General Emílio Garrastazu Médici. Sim, será preciso meio século para que mais uma vez possamos ver um treinador da seleção não abaixar a cabeça diante de um Governo que quer politizar o futebol.
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O desenrolar dos acontecimentos no futuro desta vez não terei como revelar, pois deixei 2021 às vésperas de uma partida da seleção válida pelas Eliminatórias pra Copa de 2022, contra o Paraguai, e outras definições de confrontos. Ao embarcar, o imbróglio era, ou melhor, será tamanho que a partida em si estará causando menos expectativa do que um tal “manifesto” que treinador, comissão técnica e jogadores brasileiros terão prometido soltar logo após a partida. No processo de “fritura” desse nosso futuro técnico, também teremos generais do Exército dando pitacos críticos pela troca do comando do time. Sim, daqui a 51 anos essa história vai se repetir, sinto informar. Mas viajei no tempo para revelar a vocês os próximos capítulos desta tabelinha entre futebol e política nos dias de hoje. Anotem aí: daqui a três dias vão mandar Saldanha passear no bosque… E comer criancinhas, claro, afinal ele é comunista, nunca escondeu de ninguém.
No próximo século, “comunismo” e “ser comunista” serão mais ou menos como o “pecado original” da Igreja: facções políticas mal intencionadas vão usar a referência sempre que quiserem desqualificar alguém ou algo perante as massas. Mais uma simbologia fácil pra todo mundo “entender”. “Esse aí é comunista!”, dirão, ou “Eles querem o comunismo no Brasil.” E assim qualquer cidadão comum terá medo de “apoiar o comunismo” pra não “morrer e ir pro inferno”. Farão mais ou menos o mesmo com uma grande empresa de comunicação e jornalistas em geral. Pensa diferente da gente? É comunista. João Saldanha não vai ganhar o apelido de João “Sem-Medo” à toa. Ele bate no peito pra dizer, é afiliado ao Partido Comunista Brasileiro e põe a cara (e barba rala) à tapa denunciando abusos do Governo em plena Ditadura Militar. Sim, se vocês não sabem ainda, estamos numa Ditadura. Mas quem aí realmente não sabe e quem finge não saber?
Vocês viram a entrevista que o João deu outro dia no Sul? No futuro será famosa, pela frase que disse ao ser indagado sobre a convocação do Dario Peito de Aço, do Galo mineiro, preferência externada pelo nosso Presidente Médici, volta e meia flagrado em estádios com seu radinho de pilha. Disse o João: “Eu não escalo o ministério e o Presidente não escala a seleção.” Alerta de spoiler mais uma vez: o técnico que substituirá Saldanha acabará convocando o Dadá Maravilha, ele estará no grupo que segue ao México, mas não vai jogar um minutinho sequer. Médici não vai se importar. A campanha do nosso Escrete no México vai apagar muito desse seu passado no governo. Inclusive as torturas e mortes que patrocinou. Mas não pra sempre.
Ontem o Dadá até teria sido útil no peladão de Moça Bonita, diante de algo entre 20 e 30.000 pessoas – foi impossível confirmar, pois não houve venda de ingressos, era um evento para os trabalhadores da fábrica do bairro. A galera vaiou e até xingou o treinador, pois o Brasil em nada lembrou a equipe vibrante das Eliminatórias, que venceu todos os seis jogos que disputou sob a batuta de Saldanha. Curiosamente, a partida contra o Paraguai à qual me referi, em 2021, poderá igualar esta marca do time canarinho, que daqui a 51 anos permanecerá como a melhor campanha brasileira em jogos de classificação para a Copa. Foram 17 jogos do João no comando do time brasileiro; 14 vitórias. Mas empatar com o Bangu era tudo que a CBD e o Médici queriam pra justificar o afastamento “desse comuna”.
Pior do que empatar com o Bangu, é empatar com o Bangu graças a um gol contra. Quando o primeiro tempo acabou 1×0, com domínio banguense, o técnico Flávio Costa, que não é bobo nem nada, e antevendo uma espécie de Moçabonitazzo (afinal, era ele comandando no túnel na tragédia de 50, lembram?), trocou o time quase todo. Entraram nove reservas. Nove! (A camisa do Dadá!) Até o Aladim, que bateu aquela falta na trave que deu rebote pro Paulo Mata (ex-Bonsucesso) marcar o tento, foi sacado pra assistir de cadeira, isto é, do banco a inevitável virada do time de Pelé. Mas não aconteceu. Não fosse a pixotada do zagueiro Moraes, chutando contra a própria meta, e o Brasil deixaria Moça Bonita com uma vergonhosa derrota pro Bangu, certamente para delírio dos militares no poder.
Só me resta voltar àquela pergunta: quem teve a brilhante ideia de marcar jogo do Brasil contra o Bangu a menos de três meses do Mundial no México? No futuro vão dizer que a peleja talvez tenha sido fruto da amizade do presidente da CBD (que daqui a alguns anos passará a se chamar CBF), João Havelange, com o patrono banguense, Guilherme da Silveira Filho. Ah, preciso avisar que daqui a 51 anos ainda teremos políticos, empresários e bicheiros envolvidos no comando e na cartolagem de clubes. E aguardem: presidentes da maior entidade de nosso futebol ainda estarão aprontando das suas. Ou seja: em 2021, ainda teremos jegues. Mas não passarão!
FICHA TÉCNICA
Brasil 1 x 1 Bangu
Estádio: Moça Bonita
Local: Bangu, Rio de Janeiro
Data: 14-03-1970
Árbitro: Armando Marques
Brasil: Ado, Carlos Alberto Torres (Zé Maria), Brito, Joel Camargo e Marco Antônio; Clodoaldo (Zé Carlos) e Rivelino; Jairzinho, Dirceu Lopes (Edu), Pelé e Paulo César
Técnico: João Saldanha
Bangu: Roni (Devito), Cabrita (Bicas), Serjão, Luís Alberto (Moraes) e Bauer; Sidclei (Vanderlei) e Didinho (Neném da Guia); Mário (Gijo), Paulo Mata (Édson), Jorge Félix (Lins) e Aladim (Zé Carlos)
Técnico: Flávio Costa
Gols:
1º tempo: Paulo Mata (25’)
2º tempo: Moraes, contra (25’)