Reza a lenda que o Padre Antônio Vieira conhecia a Bíblia de cor e salteado. Deixava que alguém lesse um versículo a esmo e, a partir da citação, continuava o texto até a última palavra do Apocalipse.
Não há motivo para duvidar de que ele fosse capaz da façanha. Por mais que pareça incrível a nossas mentes modernas e preguiçosas, decorar a Bíblia era uma proeza mais ou menos comum no século XVII. Os livros eram tão escassos que só havia uma forma de acessar o conhecimento a qualquer hora e em qualquer lugar: tornar-se uma biblioteca humana.
Quatrocentos anos depois, material impresso e digital é o que não falta. Em compensação, faz tempo que jogamos nossa capacidade de memorização no lixo. Levante o dedo quem conhece um poema completo de cor… Viu como a coisa é séria?
Se os antigos sofriam com a ausência de livros, jornais e revistas, hoje sufocamos entre as avalanches de informação que nos atingem de todos os lados. Essa realidade já estava configurada com tecnologias como a TV e o videocassete, mas chegaram ao cúmulo com a popularização da internet.
A memória não é a única vítima do momento. A concentração também sofreu um duro golpe. Acostumadas com os anacolutos sincopados do Twitter e do WhatsApp, as pessoas estão com dificuldades cada vez maiores para ler textos longos. Já que os meios digitais se limitam a tópicos rápidos e superficiais, aprofundar um tema é tarefa que se tornou impossível. Não há discussão, mas bate-boca; não há teorias, apenas palavras de ordem.
Se antes vivíamos confusos porque havia conteúdo de menos, hoje vivemos estressados porque há conteúdo de mais. Mas o quadro do desastre ainda está para se completar se pensarmos em teóricos como Marshall McLuhan. Ele sempre dizia que os meios de comunicação não são passivos. Mais do que informar ou entreter, modulam nossas estruturas cerebrais, a forma, a velocidade e a profundidade com que absorvemos o conhecimento.
As novas gerações, por isso, conseguem processar informações simultâneas com grande rapidez, mas o grau de memorização e aprofundamento está sempre perto do zero. Como lidar com essa nova realidade? O que fazer para que possamos absorver a informação e não sermos simplesmente absorvidos por ela? Decorar a Bíblia certamente está fora de questão.
Entretanto, é aqui que entram os livros e as formas mais tradicionais de comunicação impressa. No século XIX, época em que os romances eram longos e caudalosos, muitas vezes desdobrando-se em tramas infindáveis que ocupavam vários volumes, a leitura estava mais próxima do ócio e do entretenimento do que de um desafio intelectual propriamente dito.
Hoje os romances são mais sintéticos e objetivos (menos o último do Paul Auster), não se preocupam tanto com o todo, mas com as partes de uma suposta realidade, mas ainda exigindo atenção do leitor.
Ler romances, na época das redes sociais, significa mais do que passar por um instante de lazer. Significa um desafio e uma aventura. Desafio à nossa capacidade de memória, e aventura, grande aventura, rumo às longínquas e perdidas profundidades da concentração.