O caminho da estabilidade
Cinquenta e quatro anos de mercado aberto no Brasil: a construção de um arcabouço de política monetária, a taxa Selic, o Copom e a independência do BC
Neste ano, completamos 54 anos de uma história bem interessante, quase uma saga monetária. Em 1970, iniciávamos a colocação de títulos públicos, oferecendo simultaneamente a possibilidade de um novo instrumento para investidores, agentes financeiros e o Tesouro Nacional: as operações de mercado aberto e o mecanismo de financiamento que ficou popularmente conhecido como overnight, ou, tecnicamente, as operações compromissadas.
Foi necessário um esforço do Banco Central do Brasil (Bacen) para organizar e treinar o mercado, tornando as regras de negociação transparentes. Dessa forma, o mercado financeiro investiu na formação de operadores, os traders, e os investidores passaram a ter a oportunidade de obter maior liquidez em investimentos de renda fixa. O Tesouro Nacional, por meio dos leilões de títulos da dívida pública, passou a ter acesso a um importante mecanismo para financiar a dívida. Estava criado um novo e relevante mercado.
A questão que trago para você, caro leitor de VEJA e Veja Negócios, é que a construção do arcabouço monetário no Brasil, até a independência do Banco Central, exigiu resiliência, talento e muito suor. Foi necessário enfrentar várias crises internacionais e desenvolver um processo de comunicação com a sociedade. A independência do Bacen tem como finalidade mitigar as influências do poder executivo e forçá-lo a se preocupar com o equilíbrio das contas públicas. Afinal, o conflito fiscal-monetário ocupa sempre muito espaço na mídia, e nem sempre o cidadão, que também é contribuinte e eleitor, consegue compreender o que acontece e, mais importante, como isso afeta sua vida e suas finanças. O equilíbrio fiscal, ou seja, uma dinâmica balanceada entre a arrecadação de impostos e os gastos públicos, é necessário para promover um ambiente econômico saudável, permitindo investimentos por parte do setor privado, uma taxa de juros mais baixa e um nível de consumo adequado das famílias, evitando o superendividamento.
O Surgimento do Sistema Especial de Liquidação e Custódia – Selic
O Selic foi criado em 1979, numa parceria do Bacen com o mercado financeiro, para responder a desafios econômicos específicos do período, com o objetivo de melhorar o controle da política monetária, aumentar a segurança e a eficiência do mercado de títulos públicos, que passaram a ser escriturais, e promover a estabilidade financeira. Seu impacto foi significativo, sendo um passo fundamental para a modernização do sistema financeiro brasileiro. Ele permitiu ao Banco Central controlar de forma mais eficaz a inflação e conduzir a política monetária com maior precisão. Além disso, a maior segurança e eficiência trazidas pelo Selic ajudaram a consolidar o mercado de títulos públicos, que hoje é uma das bases da estrutura financeira do Brasil.
Desde então, o mercado financeiro decidiu batizar a taxa das operações compromissadas de taxa Selic, nome que foi mantido em 1996 com a criação do Comitê de Política Monetária (Copom), criado à imagem e semelhança do Fomc (Federal Open Market Committee), que é o comitê responsável por formular a política monetária dos Estados Unidos, especialmente por meio da definição das taxas de juros de curto prazo e da condução de operações de mercado aberto, que envolvem a compra e venda de títulos do governo. Sua principal função é ajustar as condições financeiras para promover o máximo emprego, a estabilidade dos preços e moderar as taxas de juros de longo prazo, contribuindo para um crescimento econômico sustentável.
A Criação do Copom e a Implementação das Metas de Inflação
Em 1996, o Banco Central do Brasil deu um passo significativo para consolidar a política monetária ao criar o Comitê de Política Monetária. A criação do Copom foi um marco na modernização da gestão econômica do país, formalizando o processo de definição da taxa básica de juros, a Selic, que já havia se tornado o principal instrumento de política monetária.
O Copom foi instituído com o objetivo de estabelecer diretrizes para a política monetária, e uma de suas principais responsabilidades é a definição da meta para a taxa Selic, com o propósito de garantir a estabilidade de preços e, consequentemente, o controle da inflação. A composição do Copom inclui o presidente do Banco Central, os diretores da instituição e outras figuras-chave na formulação da política econômica, que se reúnem periodicamente para avaliar a conjuntura e tomar decisões sobre os rumos da política monetária. Para melhorar a comunicação com os agentes de mercado, após a decisão da taxa de curto prazo pelo Copom, é publicado um comunicado e, posteriormente, a ata da reunião, detalhando e justificando a decisão tomada. O Comitê se reúne a cada 45 dias, o que dá, em média, 8 reuniões por ano.
Metas de Inflação: Uma Ferramenta para a Estabilidade Econômica
Em 1999, o Brasil adotou o regime de metas de inflação como uma forma de ancorar as expectativas inflacionárias e proporcionar um ambiente econômico mais previsível. O Banco Central passou a perseguir uma meta inflacionária definida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), que estabelece um valor central para a inflação, com um intervalo de tolerância.
As metas de inflação servem como um guia para as decisões do Copom sobre a taxa Selic. Quando a inflação ameaça ultrapassar a meta, o Copom tende a aumentar a taxa de juros para conter a demanda e trazer a inflação de volta ao patamar desejado. Por outro lado, se a inflação estiver abaixo da meta, a política monetária pode ser afrouxada, com cortes na taxa Selic para estimular a economia. Esse regime deu mais transparência e previsibilidade para a política monetária, ajudando a estabilizar a economia brasileira em períodos de volatilidade global e crises internas.
Independência do Banco Central: Um Passo Crucial para a Credibilidade
A independência do Banco Central do Brasil, formalizada em 2021, foi um dos passos mais significativos na construção de um arcabouço de política monetária robusto e confiável. A autonomia institucional do Bacen foi um avanço crucial, pois protege a política monetária de pressões políticas de curto prazo, permitindo que as decisões sejam tomadas com base em critérios técnicos e no compromisso com a estabilidade de preços.
Antes da independência, havia uma preocupação constante com a possibilidade de interferência política nas decisões do Banco Central, especialmente em períodos eleitorais, quando a tentação de reduzir artificialmente as taxas de juros para estimular a economia poderia comprometer a estabilidade de preços a longo prazo. Com a independência, o Bacen ganhou a prerrogativa de definir a política monetária de maneira mais autônoma, o que contribui para uma gestão econômica mais previsível e menos suscetível a ciclos políticos.
Essa independência é fundamental para manter a confiança dos mercados e da sociedade na capacidade do Banco Central cumprir seu principal objetivo: a manutenção da estabilidade da moeda e a preservação do poder de compra da população. Com um Banco Central autônomo, o Brasil fortaleceu seu compromisso com a disciplina fiscal e a estabilidade econômica, elementos essenciais para a prosperidade de longo prazo.
A discussão da taxa de juros no Brasil precisa ocorrer de forma serena, técnica, sem paixões ou outras variáveis. Para medir a importância da decisão de fixar a taxa Selic, quero lembrar ao leitor que, desde a criação do Copom, estatisticamente a taxa tem uma média de 14,00% a.a. e um desvio padrão (volatilidade) de 8,00% a.a.
Esses números revelam, de maneira simples, transparente e técnica, a percepção de risco da economia brasileira pelos investidores. Qualquer interferência de caráter político só contribui para atritos e aumento da incerteza, o que, em dado momento, pode gerar a alta dos preços e, consequentemente, a alta da taxa de juros. É importante lembrar, leitor, que os mecanismos de derivativos de juros e câmbio reagem instantaneamente a qualquer tentativa de influência política na decisão monetária.
Aproveito para sugerir a leitura do livro Caminhos e Descaminhos da Estabilização, publicado post mortem, do excepcional economista e professor Affonso Celso Pastore, pela Portfolio Penguin, com prefácio do não menos brilhante economista Ilan Goldfajn.
No livro, Pastore revisita momentos críticos da história econômica brasileira, como o Plano Real e os desafios subsequentes enfrentados pelos diferentes governos para manter a estabilidade econômica. Ele explora tanto os “caminhos” que levaram a avanços significativos na economia quanto os “descaminhos”, ou seja, as armadilhas e os erros que prejudicaram o crescimento sustentável do país.
Me despeço deste artigo citando minha primeira professora de Finanças, minha avó materna, Cacilda, que me ensinou que o segredo do sucesso é gastar menos do que se ganha.
O sucesso da economia passa pela estabilidade fiscal e não só pela taxa de juros.