Três meses após o início da pandemia, em meados de 2020, a cantora carioca Julia Mestre se viu sozinha no seu apartamento em Copacabana. À época com 24 anos, ela teve uma ideia para aplacar a solidão: convidar os amigos de escola — e também músicos — Dora Morelenbaum, Lucas Nunes e Zé Ibarra para dividir o espaço com ela e o namorado. Uma república musical seria perfeita, pois eles preencheriam os dias de lockdown fazendo o que mais gostavam: tocar e cantar. Deu tão certo que assim surgiu o grupo Bala Desejo — e as canções compostas naquele período entraram no disco de estreia do quarteto, Sim, Sim, Sim, lançado no ano passado. A história da banda que vive junta, no estilo comunidade, remete a outra bem-sucedida união nos anos 1970, quando Moraes Moreira, Pepeu Gomes, Baby Consuelo e outras feras criaram os Novos Baianos num apê em Botafogo (depois, eles se mudariam para um notório sítio em Jacarepaguá). Mas as semelhanças entre presente e passado estão longe de se esgotar aí: as referências do Bala Desejo também pagam tributo à tradição musical brasileira, indo da tropicália aos Mutantes, Secos e Molhados — e, claro, os Novos Baianos.
O surgimento do Bala Desejo resume o espírito que norteia a nova geração da MPB. Assim como eles, jovens artistas como a cantora Marina Sena e os conjuntos Francisco, el Hombre, Lamparina e Os Gilsons investem numa fórmula paradoxal: eles buscam injetar as cores e ritmos do presente à música nacional, ao mesmo tempo que reverenciam seus ídolos do passado. Caminhando entre a nostalgia e a modernidade, vêm colhendo sucesso e prestígio. Todos passaram pelos principais festivais de música do país no ano passado — e devem repetir a agenda intensa em 2023. No YouTube, o Francisco, el Hombre — formado por paulistas e jovens mexicanos naturalizados brasileiros — acumula 62 milhões de visualizações, e a mineira Marina Sena chega a 93 milhões. A cantora, aliás, é um hit no Spotify: sua canção mais famosa, Por Supuesto, tem 103 milhões de reproduções. Várias Queixas, dos Gilsons, não fica atrás, com 89 milhões. O Bala Desejo acumulou menos, mas atingiu um feito para uma banda novata: seu disco de estreia levou o Grammy Latino de melhor álbum pop brasileiro.
Com visual setentista que parece saído de um túnel do tempo, o Bala exprime a relação idílica dessa turma com o legado da MPB. “Temos um sentimento de nostalgia sem ser saudosistas. Nostalgia de um tempo que não vivemos, mas gostaríamos de ter vivido”, diz a vocalista Dora. A simbiose com o passado pode ser bem explícita. Uma das últimas gravações de Gal Costa foi com Marina Sena — que, com seus ares de uma Marisa Monte cibernética, fundiu pop com eletrônica ao lado da diva na canção Para Lennon e McCartney, clássico de Milton Nascimento. Já o Francisco, el Hombre apresentará em 3 de março um show com a íntegra do álbum Acabou Chorare, dos Novos Baianos. “Antes da formação da banda, em 2013, a gente era hippie, como os Novos Baianos. Morávamos em uma casa só com artistas, pintando as paredes e tocando nas ruas”, diz o mexicano-brasileiro Sebastián Piracés-Ugarte, cantor do grupo. No Bala Desejo, a ligação é ainda mais familiar — mesmo. Dora é filha da cantora Paula e do violoncelista Jaques Morelenbaum. Lucas e Zé Ibarra fazem parte da banda Dônica, do filho caçula de Caetano, Tom Veloso. Zé integra ainda a banda de Milton Nascimento. Já os Gilsons são “nepo babies” imbatíveis da MPB: têm em sua formação filhos e netos de Gilberto Gil.
O sopro de modernidade vem do modo soltinho como os artistas trafegam por ritmos e estilos do passado e do presente. “Somos um liquidificador de influências”, diz o cantor do Francisco, el Hombre. A definição vale notadamente para Marina e os também mineiros do Lamparina — que juntam forró, funk e rock na faixa Pochete, da trilha da novela Cara e Coragem. Música eletrônica, pop internacional, ritmos latinos — tudo é passível de ser mesclado na “nova velha” MPB. “É um caldeirão, mas não uma gororoba. Um ecossistema rico onde você nota cada ingrediente”, analisa o produtor João Marcello Bôscoli.
A liberdade sincrética é um atributo louvável, mas não chega a ser uma ideia original: foi da interseção do samba com o jazz que surgiu a bossa nova, e da incorporação do rock e da contracultura nos anos 1960 que se fez a tropicália. Se a MPB sai ganhando toda vez que assimila novidades, não há sinais — até o momento — de que os novos artistas têm a pretensão de mudar o mundo, como seus antecessores. Tudo bem: quem precisa de revolução se o sonzinho é gostoso de ouvir?
Publicado em VEJA de 22 de fevereiro de 2023, edição nº 2829
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