Céline Dion enfrenta doença incurável e se despe de vaidade em novo doc
Diretora conta a VEJA que teve carta branca para filmar — e a produção mostra a força dos que aceitam e encaram, como podem, o que não dá para contornar
Feliz após gravar, com muito esforço, a canção Love Again, trilha do filme O Amor Mandou Mensagem, de 2023, Céline Dion foi para a sessão de fisioterapia exultante — e até ironizou os movimentos involuntários que seus pés, inadvertidamente, começavam a fazer. Há dezessete anos convivendo com um distúrbio neurológico raro e incurável, a síndrome da pessoa rígida, que afeta uma em cada 1 milhão de pessoas, a cantora canadense sofre de espasmos e dores lancinantes que restringem seus movimentos, entre eles, a capacidade de sustentar os agudos marcantes que a fizeram famosa.
O Amor Mandou Mensagem – Sofie Cramer
Até aquele momento, ela não sabia que a felicidade de concluir a gravação de uma música deixara seu cérebro superestimulado, provocando, em seguida, uma crise dura de assistir — e registrada com crueza, mas sensibilidade, pela cineasta Irene Brodsky no documentário I Am: Céline Dion, lançamento do Prime Video, da Amazon. Na sequência filmada, o corpo da cantora se trava completamente, as mãos ficam retesadas, a boca entorta e os olhos miram o vazio enquanto ela emite gemidos de dor. O fisioterapeuta age rápido e a coloca em uma posição confortável antes de aplicar duas doses de uma medicação forte.
Courage – Céline Dion [Disco de vinil]
Minutos depois, Céline chora ao constatar o quanto sua carreira estava comprometida. Como seguir a vida de intérprete se o ato de cantar pode desencadear tamanha crise? Esbelta, carismática e dona de uma elegância natural (e de um armário com 12 000 pares de sapato), a cantora de 56 anos sempre fez por merecer o título de diva. Logo, ao se mostrar em situação tão vulnerável, Céline choca e, ao mesmo tempo, inspira: ao lidar com o inimaginável, ela trocou a vaidade pela honestidade sem filtros. “Céline me disse para manter a cena da crise, entre outras, nas quais chorava e sentia o desconforto causado pela doença”, disse a diretora a VEJA.
Nos últimos anos, especialmente no streaming, os documentários centrados em celebridades se tornaram um substrato valioso tanto para as plataformas quanto para os artistas, que apelam para a imagem do “gente como a gente”, mas com total controle sobre o resultado final. Esse era o plano quando Irene Brodsky foi contratada para dirigir o filme sobre a carreira brilhante de Céline — e seu potencial retorno aos palcos após a turnê cancelada. Entre 2022 e 2023, ela teve acesso irrestrito ao dia a dia da artista e logo notou que não se tratava mais de um documentário sobre superação, mas, sim, sobre resiliência. “Ela me falou: ‘Não precisa pedir permissão para filmar. Se fizer isso, vai estragar o momento’ ”, conta Irene sobre a carta branca recebida. Foi dessa liberdade que saíram cenas como aquela em que Céline tenta cantar, mas desafina escandalosamente. “Não quero que os fãs me escutem assim”, diz, aos prantos.
Em um mundo que exalta a superação e a positividade a qualquer custo, o filme consegue mostrar a força dos que aceitam e encaram, como podem, o que não dá para contornar. Mesmo caminho seguiu Michael J. Fox, que sofre de Parkinson e ajudou a tirar estigmas sobre a doença ao mostrá-la no documentário Still: Ainda Sou Michael J. Fox (Apple TV+). Na música, o gigante guitarrista Peter Frampton, diagnosticado com atrofia muscular, não esconde que vem gravando o máximo de canções possível antes do avanço da condição.
Falling Into You – Céline Dion [Disco de vinil]
Essa decisão de se abrir é uma ferramenta valiosa para a saúde mental de qualquer indivíduo. Céline só revelou publicamente o diagnóstico em 2022. Antes, manteve-se nos palcos com a ajuda de remédios — ela confessa que chegou a tomar uma dose potencialmente fatal de um calmante para aguentar uma turnê. Quando nem as medicações a ajudavam, ela inventava desculpas para justificar os cancelamentos. “Não quero mais mentir”, disse.
Céline foi revelada aos 20 anos pelo Eurovision, de 1988, quando ganhou o concurso representando a Suíça. Alcançou o auge na década seguinte, entoando baladas românticas poderosas, como a indefectível My Heart Will Go On, trilha do filme Titanic. Vendeu 250 milhões de álbuns e lotou arenas pelo mundo. Em 2016, a luta contra a doença encontrou a dor da perda do marido e empresário, René Angélil. Apesar das dificuldades, ela planeja gravar um novo álbum. Resistir é preciso.
Com reportagem de Kelly Miyashiro
Publicado em VEJA de 28 de junho de 2024, edição nº 2899
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