Clara Nunes: o merecido resgate da deusa do samba em novo musical
Espetáculo em cartaz em São Paulo celebra a vida e a música da artista que deixou um legado fabuloso que merece ser mais conhecido
No “Olimpo dos bambas”, a vida pós-morte é um eterno Carnaval e um barracão de escola de samba se torna a morada de sua deusa maior: a cantora Clara Nunes. De lá, ela repassa sua breve e intensa vida na Terra, guiada pela amiga Bibi Ferreira e por seus orixás. Clara revê sua jornada musical desde o nascimento até a transformação em uma das primeiras cantoras com status de celebridade no Brasil, no fim dos anos 1960. Com a também cantora Vanessa da Mata em seu papel e esse enredo que mistura fantasia e realidade, o musical Clara Nunes — A Tal Guerreira, em cartaz no Teatro Bravos, em São Paulo, resgata a artista que é um monumento do samba.
Clara Nunes: Guerreira da Utopia – Vagner Fernandes
O espetáculo é uma homenagem oportuna. Apesar de seu legado excepcional, a verdade é que Clara não se mostra tão familiar e popular como outras musas do samba, de Beth Carvalho a Alcione. “Estamos resgatando Clara para uma geração que talvez nem saiba que algumas canções eram dela”, diz o diretor Jorge Farjalla. Uma das razões disso foi sua saída de cena precoce: a cantora morreu em 1983, aos 40 anos, de um choque anafilático durante cirurgia de varizes. Como não deixou filhos, também lhe faltou alguém capaz de manter seu trabalho em voga. A música de Clara, porém, nunca deixou de ressonar como fonte de inspiração. Hoje, é referência onipresente na música brasileira, inclusive para os novos talentos.
A força de Clara vem não só de sua voz e de sua marca como intérprete — é dela, por exemplo, a versão mais arrepiante de Juízo Final, clássico do compositor Nelson Cavaquinho. Nos palcos ou gravações e entrevistas, ela se notabilizava por encarnar, com entrega e verdade indubitáveis, a guerreira imbuída de uma missão: celebrar a cultura e a religiosidade de um Brasil de raízes africanas. Nascida no interior de Minas Gerais, Clara se tornou espírita ao se mudar para Belo Horizonte, nos anos 1950. Já na década seguinte, inspirada por cantoras do rádio como Ângela Maria e Elizeth Cardoso, mudou-se para o Rio para tentar a vida como artista. Ao se envolver com o samba, o morro e as religiões de matriz africana, converteu-se à umbanda — daí em diante, pôs sua voz a serviço da crença em canções como Guerreira, A Deusa dos Orixás e, claro, o maior sucesso da carreira, O Mar Serenou, em cujo clipe surgia na praia com sua roupa feita de conchas. Para os fãs, era algo entre uma entidade espiritual e uma sereia.
Clara: Uma fotobiografia – Júlio Diniz
O sucesso, no entanto, não veio sem turbulências. Durante a ditadura militar, Clara não passou incólume. Após gravar Apesar de Você, de Chico Buarque, canção de protesto contra o regime, Clara foi obrigada a cantar nas Olimpíadas do Exército de 1971 para “compensar” o mal-entendido — Elis Regina passou pelo mesmo constrangimento. Na ocasião, Clara disse acreditar que a música tratava de uma briga de namorados. A aparente inocência foi deixada de lado nos anos seguintes, quando ela passou a gravar canções de notório apelo político e social, como a antológica Canto das Três Raças — de autoria de seu marido, Paulo César Pinheiro, expoente do samba dos anos 1970.
O Canto das Três Raças – Clara Nunes [Disco de vinil]
No musical, a política estará presente, mas Vanessa da Mata dará vida a uma Clara sobretudo alegre e divertida. “O Brasil tem memória curta, e Clara é muito necessária neste momento para combater o preconceito contra religiões de matriz africana”, diz ela. Que o canto da sereia continue ecoando por muito tempo.
Publicado em VEJA de 2 de agosto de 2024, edição nº 2904