Ao volante de um táxi, Beyoncé roda pela paisagem desértica do sul dos Estados Unidos. O rádio toca faixas de Charles Anderson e Son House, precursores do blues na virada do século XX, seguidas por Chuck Berry, pioneiro do rock nos anos 1950. Além de inovadores, os três eram negros. De repente, um grupo de homens surge em cena, e a divisão entre eles é clara: de um lado estão brancos e do outro, negros. Conforme a câmera se afasta, outros tipos surgem e a separação de cores desaparece. Juntos, eles miram atônitos um outdoor com a cantora trajando apenas lingerie e chapéu, e o título de sua nova canção, a dançante Texas Hold ’Em. O vídeo de 57 segundos, exibido no intervalo do badalado evento esportivo Super Bowl, em fevereiro, foi o vislumbre inicial de Cowboy Carter, primeiro álbum country de Beyoncé, que será lançado na próxima sexta, 29. O clipe evidencia as intenções da estrela texana: ousada como de praxe, Beyoncé não quer só mostrar mais um lado de sua versatilidade, mas mexer no vespeiro do racismo por meio de um gênero musical caro aos americanos.
Dominante em regiões historicamente preconceituosas dos Estados Unidos, a música country é parte indissociável do cotidiano da população branca. De Tim McGraw a Dolly Parton, seus ídolos maiores têm pele alva — e recentemente surgiu até uma popular vertente de extrema direita do country. O gênero é, por fim, símbolo da dita white culture — que defende a “brancura” como bandeira identitária a ser louvada, assim como sua produção artística e sua cartilha moral particular. A ousadia de Beyoncé, previsivelmente, logo instaurou uma celeuma. Das redes sociais aos corredores acadêmicos, a nova provocação da estrela pop negra trouxe à tona velhas feridas raciais e ainda iluminou estudos e teorias sobre as raízes do country — assim como as talentosas mãos negras que ajudaram a moldá-lo.
Esse resgate do passado segue um caminho tortuoso. O marco zero do country começa com o banjo, instrumento de cordas feito a partir da casca da cabaça, trazido da África ocidental por escravizados ao continente americano. Eventualmente, o banjo ganhou a companhia do violão, do violino e do bandolim, misturando referências musicais africanas com a de imigrantes irlandeses e escoceses. De tão atrelado aos negros, o ritmo dedilhado e dançante virou trilha sonora dos lamentáveis shows cômicos de menestréis brancos, que pintavam a cara de preto e dançavam em apresentações que ironizavam os africanos.
Eventualmente, a mistura de referências virou estilo e ganhou o apelido de hillbilly — termo pejorativo que se referia às canções populares feitas em regiões rurais e pobres. Suas letras de fácil identificação, sobre dilemas morais e financeiros, romances frustrados e a busca por redenção religiosa, se espalharam pelos Estados Unidos dos anos 1920 e 1930, sob a sombra da Primeira Guerra e da Grande Depressão. Não demorou para a tendência ser abraçada pela indústria fonográfica — que rebatizou, em 1949, o hillbilly de country music, expressão que evoca as tradições e os costumes da vida simples no interior. A exclusão definitiva de artistas negros do meio se deu com a política de segregação: rádios e gravadoras priorizavam cantores brancos — enquanto toda a produção negra era comercializada sob o selo de race music, ou música racial.
Mesmo distante, a história se repete. Beyoncé experimentou tal resistência recentemente, quando uma rádio no meio-oeste americano se recusou a tocar Texas Hold ’Em. “Somos uma rádio country”, explicou a estação de forma ríspida. Em 2016, quando lançou a música Daddy Lessons, seu primeiro flerte com o ritmo, o Grammy barrou a inscrição da faixa na categoria country. Três anos depois, outro impropério: o jovem cantor Lil Nas X, que desafia todas as barreiras de gênero — tanto musicais quanto sexuais —, foi retirado da parada country da Billboard pelo hit Old Town Road, mesmo sendo uma parceria com Billy Ray Cyrus, um astro (branco) do filão.
Se o racismo surge sem ser chamado, os bastidores trazem sinais de otimismo. Assim como Lil Nas X e Cyrus, outras parcerias mostram o poder da união entre os diferentes. Estrela incontestável do gênero, Johnny Cash (1932-2003) foi pupilo de Gus Cannon (1883-1979), mestre negro do banjo. Cantor com a maior vendagem da história do country, Garth Brooks, republicano assumido, recentemente defendeu uma marca de cerveja “cancelada” por trazer uma mulher trans no comercial. Ele, então, afirmou que, se o country é uma reunião de preconceitos, então não era mais parte da trupe — rejeitando, assim, a fama de reaça. Beyoncé exigiu o direito de pisar com bota e chapéu nesse terreno minado, e não vai parar por aí: rumores sugerem que seu próximo álbum será de rock, outro gênero de origem negra. Como boa boiadeira, ela pega o que é seu no laço.
Publicado em VEJA de 22 de março de 2024, edição nº 2885