Nos anos 1950, quando já era uma lenda incontornável da música, o americano Louis Armstrong recebeu em seu camarim um rapaz branco. Após apertar a mão do trompetista, o fã teve um chocante rasgo de sinceridade: disse que, embora possuísse todos os discos dele, não gostava de negros. “E ele disse isso bem na minha cara”, lembraria mais tarde um indignado Armstrong. Não satisfeito, o homem emendou: “Mas eu sou louco por você, seu desgraçado”. O fato é contado pelo próprio músico em uma das centenas de fitas caseiras que ele gravou ao longo da vida, e nas quais relembra sua história extraordinária. Além delas, tinha o hábito de escrever diários em textos batidos a máquina ou manuscritos, e de guardar fotografias e recortes de jornais. Ciente da sua importância, ele sabia que escreveriam sobre sua vida e legado na posteridade. Os registros, portanto, garantiriam que todos os lados de sua personalidade fossem contados por ele mesmo, e não por outra pessoa.
Nascido há 121 anos em Nova Orleans, a capital do jazz e do blues na Louisiana, Armstrong viveu o auge da segregação racial que até meados dos anos 1960 era institucionalizada nos estados do sul dos Estados Unidos. Ainda assim, quando morreu, em 1971, era visto pelos fãs como uma peça de museu — um artista alheio ao movimento dos direitos civis, que explodira uma década antes. Ao não se posicionar, acusavam alguns, Armstrong nada mais fazia que garantir a admiração dos brancos. Um novo e excepcional documentário, dirigido pelo cineasta e ativista Sacha Jenkins, agora desfaz essa concepção errônea com um mergulho sem precedentes no acervo pessoal dessa lenda.
Em Louis Armstrong: Black & Blues, que será exibido este mês na Mostra de Cinema de São Paulo e a partir do dia 28 de outubro estará disponível na plataforma Apple TV+, ouvimos o próprio músico narrando suas histórias. Embora Armstrong seja a encarnação física do jazz, e sua maneira de tocar tenha ajudado a definir a essência do gênero, a arte do improviso, sua música não é o maior destaque do documentário. Jenkins está mais interessado em contar quem foi o homem Satchmo ou Pops — apelidos pelos quais ele era conhecido. “Ele foi um dos negros mais importantes da cultura popular e um dos americanos mais conhecidos do mundo”, disse Jenkins a VEJA.
Pops. A Vida De Louis Armstrong
Criado em uma das áreas mais miseráveis de Nova Orleans, Pops foi preso aos 11 anos por disparar uma arma de fogo no réveillon de 1912 — fato que, indiretamente, ajudou a introduzi-lo na música. Levado para um reformatório, teve contato com a corneta e o trompete pela primeira vez, impressionando por atingir notas altas que ninguém conseguia. Convidado a tocar em Chicago, cidade onde os negros não eram segregados, Armstrong se tornou um requisitado músico e ator. Seu jeito de cantar sorrindo, com aquele vozeirão grave e aveludado, diferia de tudo o que já tinha se ouvido até então. Em pouco tempo, transformou-se num dos artistas mais celebrados do país — e do mundo.
Very Best Of (180G) [Disco de Vinil]
Mas, como ilustra com precisão o documentário, o sucesso inédito de um pop star negro não dirimiu a chaga do racismo. No fim dos anos 1950, de volta à Louisiana, Armstrong se indignaria com a segregação. Na plateia, ele só via brancos — aos negros, só era permitido ficar no fundo ou do lado de fora. Em um áudio, Armstrong conta, irritado, que foi obrigado a sair pelos fundos do teatro após o show. “E eu estava usando um smoking”, disse. A gota de água veio após a proibição da formação de bandas mistas, com músicos negros e brancos. Desde então, ele parou de fazer shows no estado. “Tratam-me melhor em todo o mundo do que na minha cidade natal”, reclamou.
Pops só voltaria a se apresentar por lá em 1965, após o fim da segregação. “Isso foi de um ativismo sem precedentes”, diz Jenkins. Embora o filme se alongue um pouco em temas secundários, como a estranha fixação de Armstrong por laxantes e seu apreço pela maconha, o diretor acerta em mostrar sua importância como embaixador da música negra de impacto global — como em suas inúmeras turnês nos dois lados da cortina de ferro que dividia a Europa na Guerra Fria. Na mesma época, visitou diversos países africanos, sempre recebido como herói. Satchmo afirmava que, na África, se sentiu como se estivesse em casa. Tempos depois, lançou The Real Embassadors, álbum emblemático ambientando em uma nação africana fictícia e com letras sobre os direitos civis. Foi ao exaltar as coisas simples da vida na singela What a Wonderful World, porém, que ele deu seu recado mais valioso: apesar dos pesares, o mundo ainda é maravilhoso. O milagre de seu talento em meio à discriminação é prova disso.
Publicado em VEJA de 19 de outubro de 2022, edição nº 2811
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