Quando lançou Ovelha Negra, em 1975, Rita Lee finalmente estava botando para fora a mágoa acumulada após sua arbitrária expulsão dos Mutantes, três anos antes. “Uma escarrada na cara teria sido menos humilhante”, escreveu em 2016, em sua autobiografia. Conforme o tempo passou, a letra se agigantou e ganhou outros significados, de hino das meninas durante a ditadura militar a tema de mocinhas rebeldes em novelas, com seu refrão que conclamava à urgência: “Baby, baby / Não vale a pena esperar”. Mais ainda, tornou-se a epígrafe de Rita: uma pessoa fora dos padrões sociais que, exatamente por isso, se transformou em símbolo do rock brasileiro. Com sua deselegância discreta (como cantou Caetano), Rita exibiu, ao longo de seus mais de cinquenta anos de carreira, uma qualidade rara: foi fiel a si mesma sem se deixar levar por modismos. Tal característica a manteve ativa e rebelde até segunda-feira 8, quando morreu em casa, aos 75, após dois anos de tratamento contra um câncer de pulmão. Dona de uma voz marcante e atitudes transgressoras, Rita deixa uma marca indelével na cultura brasileira. Em suas composições, falou de temas tabus na sociedade, como aborto, homossexualidade, drogas — e dedicou boa parte da sua obra à defesa da emancipação feminina. Ousadias que fizeram dela, sim, a ovelha negra da música e uma das maiores artistas do país.
Ao longo da vida, Rita Lee revolucionou a MPB inúmeras vezes. De ascendência americana e italiana, nascida em 1947 no bairro paulistano da Vila Mariana, Rita contava que foi uma criança sapeca. Com 20 anos, no fim da década de 60, se juntou aos irmãos Arnaldo Baptista e Sérgio Dias para criar Os Mutantes. E já demonstrava seu pioneirismo: foi uma das primeiras mulheres a tocar guitarra, um instrumento tido como exclusivamente masculino. Ela também foi uma das poucas artistas femininas da época que, além de intérprete, compunham as letras e os arranjos das músicas. Em 1967, um ano antes do primeiro álbum dos Mutantes, o trio ganhou notoriedade ao participar do III Festival da Música Brasileira, na TV Record, tocando Domingo no Parque ao lado de Gilberto Gil. Mas foi apenas no ano seguinte, com o lançamento de um dos movimentos mais emblemáticos da música brasileira, o tropicalismo, com o álbum Tropicalia ou Panis Et Circencis, que seu nome seria alçado definitivamente ao panteão dos ídolos nacionais. O disco, que teve entre seus participantes Caetano Veloso, Gal Gosta, Tom Zé e Nara Leão, foi um marco cultural e refletia, em contraste com a repressão militar, o período de ebulição criativa dos anos 1960.
Em 1968, ela se casou com o colega de banda Arnaldo Baptista. A relação foi marcada por traições de Baptista, brigas e a tentativa de subestimar o talento dela, culminando com a sua expulsão da banda em 1972 pelo próprio músico. Com sua saída, o grupo perdeu o rumo e ela se viu diante do desafio de começar praticamente do zero, como cantou em Mamãe Natureza (“não sei se vou ter algum dinheiro ou se só vou cantar no chuveiro”). Junto com a banda Tutti Frutti, lançou esse e outros sucessos, inclusive Ovelha Negra. Foi também nessa época que ela conheceu, em 1976, o guitarrista Roberto de Carvalho, por quem se apaixonou e que se tornaria seu grande parceiro musical e de vida.
Em agosto daquele mesmo ano, já grávida de três meses de seu primeiro filho, Beto Lee, Rita passou por um dos períodos mais sombrios da vida. Ela teve sua casa invadida pelos militares que disseram ter encontrado maconha no lugar. Presa, a artista foi usada como exemplo de mau comportamento para a juventude. Elis Regina foi visitá-la, acompanhada do filho João Marcello Bôscoli, então com 6 anos. Rita lembrava-se com carinho da visita, porque Elis foi a única artista a visitá-la na cadeia. “Sempre fui considerada grupo de risco. Desde que entrei para o mundo da música, fui a artista mais censurada na época da ditadura no país, por ser tida como uma mulher perigosa para os bons costume da família brasileira”, disse a cantora a VEJA em 2020.
Ao deixar a banda Tutti Frutti, em 1978, Rita seguiu em carreira-solo, tendo a seu lado Roberto como parceiro criativo, de negócios e romântico. Eis aí a outra revolução musical da artista. Ao não se prender no rock e passear também por outros ritmos como samba, pop e até a disco music, Rita ampliou os horizontes de seu gênero de origem e seu próprio alcance popular, compondo canções incontornáveis da música brasileira que ajudaram a revolucionar o cenário do pop nacional. Foram inúmeras pérolas com arranjos e letras sofisticadas, mas acessíveis o bastante para cair no gosto do povão. Lulu Santos já afirmou mais de uma vez que ele jamais existiria se não fosse pelos discos pop de Rita Lee. Em seu primeiro álbum-solo, Mania de Você, de 1979, Rita teve hits como Chega Mais, Doce Vampiro e a irônica Arrombou a Festa II (parceria com Paulo Coelho que desancava a MPB). Mas a melhor descrição do trabalho veio do incorrigível Tom Zé, ex-colega de tropicália. O músico afirmou que o disco foi um marco da liberação sexual brasileira com suas “letras sexo-pedagógicas” e teceu loas ao amor do casal, que deveria ser tão sensacional a ponto de “fazer amor por telepatia”. Simultaneamente, a cantora equilibrava a vida pessoal com a criação dos filhos, Roberto, João e Antonio.
O auge desse período ocorreu em 1983, quando, aos 35 anos, ela inaugurou no país a era dos mega-shows em estádios por artistas brasileiros. Em apenas três meses, ela havia rodado pelo Brasil com sua turnê e se apresentado para mais de 500 000 pessoas, um recorde absoluto. Até então, nenhum outro artista havia tocado em tão pouco tempo para tantas pessoas. O show era uma superprodução, com cenografia e iluminação elaboradas, e trocas de figurinos. A maior ironia é que a transgressiva Rita já não provocava medo ou ira, mas empolgação geral: atraía na plateia desde a vovozinha até o netinho. A conquista foi além. Ela foi contratada pela Som Livre e, coincidindo com o período áureo das novelas, suas músicas ganharam espaço em praticamente todas as produções da Globo. Rita é, até hoje, a artista com mais músicas em novelas, quinze faixas de aberturas e quase 100 músicas nas trilhas sonoras. Ao todo, vendeu mais de 55 milhões de discos, ocupando o quarto lugar entre os campeões nacionais de vendas, atrás apenas de Tonico & Tinoco, Roberto Carlos e Nelson Gonçalves. Com graça e elegância, Rita foi encarando a censura e em suas letras derrubou, um a um, vários tabus (confira o quadro). Na censurada Banho de Espuma, originalmente intitulada Afrodite, narrou com elegância uma vívida cena de sexo. Já em Cor de Rosa Choque, foi censurada por fazer referência ao ciclo menstrual. “Mulher é bicho esquisito / Todo mês sangra”, cantou. Não abandonou a rebeldia após a redemocratização. Em Obrigado Não, de 1997, ela misturou inúmeras polêmicas em uma só letra ao falar de aborto, casamento gay, ditadura militar, comunismo e legalização das drogas. A hipocrisia e o conservadorismo foram atacados novamente em 2012 — quando, aos 64 anos, mostrou as nádegas em um show em Brasília, cutucando um novo tabu: o envelhecimento.
Aos poucos, foi se retirando da vida pública para viver uma vida de “bruxinha”, como gostava de dizer, em um sítio nos arredores de São Paulo. Após o diagnóstico de câncer, em 2021, provou não ter perdido a verve ácida ao nomear o tumor como “Jair” — em referência, claro, a certo ex-presidente que sintetizava o reacionarismo. “Peço ao universo que minha morte seja rápida e indolor, de preferência dormindo e sonhando que estou com minha família numa praia do Caribe”, disse a VEJA. Quando ficou claro que a doença era irreversível, Rita se fechou, se comunicando apenas pelas redes sociais. Como testamento, deixa Outra Autobiografia, livro que será lançado em 22 de maio (dia de Santa Rita de Cássia), em que relata sua luta contra a doença. De fato, a própria Rita preferia ser chamada de “padroeira da liberdade” do que de “rainha do rock”. A força da pantera rosa-choque é imortal.
Publicado em VEJA de 17 de maio de 2023, edição nº 2841
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