O pedestre desavisado toma um baita susto. Bota o pé na rua e, ops, passam uma, duas, três bicicletas. O distraído que ousar adentrar o território dos ciclistas é logo chamado à realidade: “Ei, aqui não pode! Presta atenção!” Em Paris, elas deslizam para cima e para baixo sob a proteção de regras que, aos poucos, vêm encolhendo o espaço para carros e fazendo da frota sob duas rodas senhora do pedaço. E dá-lhe bufadas do pessoal ao volante, cuja vida fica a cada dia mais dura. Essa é a ideia.
Durante os Jogos, o uso das bikes foi vastamente incentivado, com frota ampliada e vias feitas para conduzir direto às arenas, uma boa alternativa à muvuca do metrô. Um estímulo pontual que faz parte de uma política mais abrangente, tocada pela prefeita Anne Hidalgo, colecionadora de desafetos pelo estilo bateu-levou e por medidas como as que justamente põem freio à turma motorizada, que ela sonha ver toda a bordo de bicicletas.
Uma das iniciativas nessa direção é pesar a mão no preço do estacionamento, que atingiu patamar estratosférico. Para carros maiores, uma horinha na rua saltou para 18 euros (mais de 100 reais). E não para por aí. Em muitas vias, a velocidade baixou para 30 quilômetros por hora, impondo morosidade às viagens de carro para favorecer a vida a pé e à bicicleta – e o que não falta é parisiense maldizendo a alcaide, que justifica: “A ideia é poupar o meio ambiente e deixar o trânsito menos caótico, algo inadiável para as cidades modernas.” Assim, aos poucos, Paris vai virando uma página: os ciclistas já são o dobro dos motoristas de carro.
PERAÍ QUE HÁ REGRAS
Para quem vem de fora e opta por trajetos de bicicleta, é bom consultar as regras que regem o ir e vir. Ignorá-las pode render multa alta – e a toda hora se avista alguém desesperado, tentando explicar à polícia que o desliza é só exceção. Para a fatia da humanidade que vive com os olhos grudados no celular, vale a lembrança: dar aquela navegada ao guidão é infração de 135 euros (mais de 800 reais, sem perdão) – mesmo valor para os que guiarem com fones nos ouvidos ou tiverem ingerido mais que uma taça de vinho (sim, há bafômetros à espreita dos ciclistas). E nada de parar em local que atrapalhe a circulação nem se esquecer, por exemplo, de sinalizar com o braço ao mudar de direção. Multa: 35 euros (uns 200 reais).
A partir daí, o passeio é favorável em tudo aos ciclistas, já que a cidade vem sendo gradativamente transformada sob essa filosofia. Na Rivoli, rua que vai de Leste a Oeste margeando o museu do Louvre, havia três pistas, sendo que os ciclistas ainda tinham que dividir uma delas, espremidos entre veículos sem nenhuma condescendência. Hoje, a coisa se inverteu: são duas pistas inteiras só para elas, as empoderadas bicicletas, e a terceira deve ser irmamente rachada entre ônibus e táxis. Xô, carros. E olha que privilégio: em certas zonas, uma vez sob duas rodas, também dá para atravessar o sinal vermelho e trafegar em dois sentidos numa mesma via. É só seguir as placas.
ATÉ A ESCOLA ENSINA
Não foi sempre assim em Paris, que registra um atraso na área ciclística em comparação a outras cidades europeias, como Amsterdã e Copenhague, na franca dianteira. Os historiadores contam que a febre francesa pelas motorizadas mobiletes, nas décadas de 1970, 1980, fez muita gente aposentar a bicicleta, que só começou a reaparecer na paisagem anos mais tarde.
Sob o impulso olímpico, que deu gás ao ímpeto ciclístico, a cidade conta agora com 420 quilômetros de pistas exclusivas para bicicletas e ao todo 2400 quilômetros em que elas podem circular lado a lado com carros e pedestres. O que faz de Paris um caso único é a velocidade com que as bikes vêm acumulando conquistas. Em 2021, receberam um belo empurrão em meio às barreiras pandêmicas, quando o governo local criou as chamadas coronapistas, para dar estímulo a percursos ao ar livre e chegou a ponto de distribuir vales de até 300 euros aos residentes, para ajudar na compra da bicicleta.
Ensinar crianças desde cedo a dar as primeiras pedaladas e as regras para se locomover sobre duas rodas virou tema até do currículo escolar. “O objetivo é que as próximas gerações encabecem uma mudança de mentalidade e abracem de vez a bicicleta”, explica a brasileira Fernanda Hinke, co-fundadora da agência Conexão Paris Viagens, que ministra à garotada o curso savoir rouler, para que se tornem bons cidadãos ao guidão. Ela também promove passeios dentro e fora da cidade (um deles, batizado de Meia-Noite em Paris, revisita cartões-postais sob a luz da Lua). Fernanda e toda uma turma que não abre mão da bicicleta são conhecidos como “educadores da mobilidade” – um ofício para valer numa cidade que quer mudar de rota.