DESCONSTRUINDO EUGÊNIO BUCCI, QUE POSA (EMIR SADER ESCREVERIA “POUSA”) DE PETISTA ISENTO. LEIAM! É UM BOM EXERCÍCIO
“Ah, Reinaldo é tão agressivo!” Não! Errado! Reinaldo debate ideias. O problema, trato disso no post sobre Elio Gaspari (acima), é que a divergência está caindo de moda. Pior do que isso: tende a ser criminalizada. Quando não o é com a judicialização do debate propriamente, busca-se encapsular quem dissente, separando-o do mundo dos vivos. […]
“Ah, Reinaldo é tão agressivo!”
Não! Errado! Reinaldo debate ideias. O problema, trato disso no post sobre Elio Gaspari (acima), é que a divergência está caindo de moda. Pior do que isso: tende a ser criminalizada. Quando não o é com a judicialização do debate propriamente, busca-se encapsular quem dissente, separando-o do mundo dos vivos. “Ah, não! Com este, eu não debato!” E, assim, vão se criando os corajosos que só aceitam falar para os seus. Não! Errado! Reinaldo é generoso, isto sim! Tanto é que, por recomendação de um amigo, leu um texto de Eugênio Bucci publicado no Estadão na quinta. Chama-se “As duas cabeças da corrupção”. Bucci é ex-presidente da Radiobras e professor da ECA-USP e da ESPM. Já o contestei aqui algumas vezes.
Petistas os há de muitos modos — mais variados que as cabeças da hidra. Mas podem ser divididos em dois grandes grupos: os que não veem mal nenhum em se impor pela força e entendem que, vença-se nas urnas ou no berro, os vencidos têm de ser esmagados. E há o tipo Bucci (se ele é filiado ao ou não, isso pouco importa): aceita lançar um olhar crítico sobre os seus pares DESDE QUE ELES SEJAM ENTENDIDOS COMO OS PROTAGONISTAS NECESSÁRIOS E FATAIS DA HISTÓRIA. Aos menos avisados, esse pressuposto — que traz a marca original da luta de classes — escapa.
Não é raro encontrar textos de Bucci em que ele critica a tentativa de seu partido de controlar os meios de comunicação, de impor censura à imprensa, de partir para o confronto. Ele não é, por exemplo, uma referência dos blogueiros sujos porque seu pensamento, com efeito, está além do que aquela súcia consegue elaborar. O negócio naquelas paragens é outro: é negócio mesmo! Bucci se quer um formulador mais refinado. Submetido seu pensamento, no entanto, a uma leitura um pouquinho mais rigorosa, a conclusão é uma só: não há cabeça bonita na hidra!
Reproduzo seu texto em vermelho e comento em azul.
As metáforas são perigosas, especialmente nessa matéria. Mesmo assim, vale uma figura. Uma só.
A corrupção é uma hidra de muitas cabeças, como muita gente diz, mas duas são as cabeças dominantes: uma é de esquerda e a outra, de direita. Ambas se estranham, encaram-se com ares de ódio espelhado, agridem-se às dentadas, mas acabam por aceitar a convivência. Elas supõem que comandam o corpanzil desse gigante de proporções indefiníveis em que estão plantadas pelo pescoço, mas a verdade é que vão a reboque. As duas seguem juntas a trilha tortuosa que a hidra escolhe sozinha, sem consultá-las. Lá vão elas, sacolejando no dorso de uma razão sem razão, com a pose de quem tenta passar a ilusão de controlar o destino. Lá vão elas, às vezes falantes, outras vezes rabugentas, fingindo dominar o diabo que as carrega.
Huuummm… A alegoria (que é essa cascata de metáforas) também é perigosa porque ela exige que o autor encontre no novo referente de que trata similitudes com aquela outra realidade, que serviu de evocação. E a gente vê que Bucci desconhece o sentido original da hidra. Mas aí já seria pedir demais! Fiquemos, então, com o óbvio: Bucci, um rapaz isento, começou a dar bordoadas na esquerda e na direita. Seria ele de centro? Vamos ver.
Ponto. Fim da metáfora – ou quase.
Então tá.
Quando um infeliz que se pensa de esquerda é interceptado com maços de dólares na cueca, seu gesto é imediatamente protegido por um cordão de isolamento imaginário, uma blindagem ideológica. Uma parte considerável dos seus correligionários logo faz circular uma explicação de ordem tática. O começo dessa explicação consiste em pôr a responsabilidade no sistema – palavra que, como bem sabemos, é um curinga nos panfletos de todo gênero.
O leitor que também repudia a mania que esquerdistas têm de defender seus criminosos, se não estiver muito atento, tenderá a concordar com Bucci. “É isso mesmo! Esse pessoal tem de parar com isso”. Distraído, não percebeu que o petista ilustrado escreveu “Quando um infeliz que se pensa de esquerda é interceptado com maços…” Entenderam? Ele “se pensa”, mas não é! Como as palavras fazem sentido, não há escapatória: só falsos esquerdistas fazem coisas assim. Ah… Não! Dinheiro em cueca não é crime corriqueiro na esquerda. Ela sempre preferiu a sua parte em sangue.
NOTA À MARGEM: O cara da cueca, José Adalberto Vieira da Silva, era mesmo um pobre diabo, sem um gato para puxar pelo rabo. Seu chefe, sim, já era poderoso à época e hoje é ainda mais! José Guimarães, irmão de José Genoino e então deputado estadual, é hoje deputado federal. Deve ser o líder do PT na Câmara no ano que vem. É considerado, creiam, um dos deputados mais influentes do partido. ATENÇÃO! O CHEFE DO HOMEM DA CUECA FOI O RELATOR DA EMENDA QUE CRIOU O REGIME ESPECIAL PARA A CONSTRUÇÃO DAS OBRAS DA COPA DO MUNDO! Sigamos com Bucci.
Segundo esse discurso, não há pessoas corruptas na esquerda, só o que existe é um sistema corrupto “que precisamos administrar se quisermos tomar o poder, companheiro”. Ou seja, sem lançar mão das armas obscuras não se vence o inimigo de classe. Logo, o militante de esquerda que negocia dia e noite com a corrupção pode até ter as mãos sujas, mas mantém o coração e a consciência limpíssimos, imaculados. Vai roubar ou, pelo menos, vai deixar roubar, mas depois ganhará honras de herói. Eis a justificativa moral que habita a cabeça canhestra da hidra.
Curioso! Eu li errado no parágrafo anterior ou foi o próprio Bucci a afirmar que o “infeliz” dos dólares na cueca “se pensa de esquerda”? É o chamado método autossocrático. Ele desconstrói o próprio enunciando. Mas não se animem, não. O autor está se preparando para tratar da outra cabeça, a da direita. Aí é que vocês vão ver.
Agora olhemos para a direita. No caso brasileiro, é ela a mãe do patrimonialismo – que, por sua vez, é o pai dos corruptos e dos corruptores.
Pronto! Eugênio Bucci se revelou. Ele é a terceira cabeça da hidra! A corrupção é, pois, na origem, “de direita”! Aqueles seus parágrafos “nem-nem”, que afetavam severidade com os dois lados, eram meros artifícios retóricos para acusar a direita. Assim, entende-se que esquerdistas, quando corruptos, o são por imitação ou por adequação a um sistema que herdaram. Má sorte de Bucci ter evocado justamente o cara da cueca, o que remete o caso para José Guimarães, o relator da emenda que criou um regime de exceção para as obras da Copa. O que essa malandragem em particular tem a ver com o velho patrimonialismo — na hipótese de que ele saiba mesmo do que fala? Nada!
Se recuarmos no tempo, e nem é preciso recuar tanto, veremos que, nas hostes do conservadorismo pátrio, a política não tem sido outra coisa senão a atividade profissional de se apropriar do que é público para fins privados.
É mesmo? Os amigos de Bucci dizem que foi o “conservadorismo” que privatizou, por exemplo, a Telebras. A universalização do telefone — e havia uma Telebras com esse propósito, não? — democratizou um serviço e tornou, na prática, público o que era… público. Então não haveria formas ditas “progressistas” de se apropriar do público com fins privados? O que fazem os petistas hoje no Estado brasileiro, nas estatais e nos fundos de pensão senão isto: tratar como propriedade do partido o que a todos pertence?
Esse tipo de crítica ao patrimonialismo é velha, data do final da década de 50 a meados da de 60! A realidade mudou muito. Desafio Bucci a demonstrar, com nomes e dados, onde está aquela velha “direita”. Talvez haja resquícios dela no Nordeste de um José Sarney — o mais caro e importante aliado no petismo no Congresso. O setor financeiro, por exemplo, que extrai boa parte do seu poder da arbitragem dos títulos públicos, em nada remete àquele antigo patrimonialismo. E o setor financeiro, sim, está com o poder no governo Lula e não está prosa.
Como o Estado precedeu a sociedade na formação nacional, foi do primeiro que se pilhou a matéria-prima para vertebrar a segunda, que veio sendo gerada e ordenada à imagem dos sonhos (e pesadelos) mais regressivos.
Com todo respeito, parece querer dizer alguma coisa, mas não diz nada! E, no que diz, trata-se de uma batatada. Como é? O Estado foi pilhado para vertebrar a sociedade? Mas pilhado por quem? Bucci leu mal, ou não leu, “Os Donos do Poder”, de Raymundo Faoro. Não é isso que está escrito lá. Não é mesmo!
Nesse percurso, tomar para si o que deveria ser de todos se foi tornando o pressuposto da própria sustentabilidade da ação política. Privilégios hereditários, benesses, sinecuras e monopólios inexplicáveis decorrem, todos, daí. Dentro do crânio direitista da hidra metafórica, o poder só se deixa domar por aquele que tem a ousadia de tomar posse pessoal (e familiar) do poder: manda (no Estado) quem é dono ou quem faz as vezes de dono (do Estado). O poder é como o dinheiro: não aceita desaforo. Para exercê-lo é preciso usufruir o erário. Pessoalmente. Fisicamente. Diretamente. Sem cerimônia. A justificativa moral para a corrupção no imaginário da direita está aí: ela é a indispensável fonte extraoficial para sustentar a dispendiosa fachada oficial da vida pública – e para compensar patrimonialmente o agente e seus apoiadores. É pegar ou largar.
A crítica de Bucci vem com uns 40 anos de atraso. E vem a contrapelo dos fatos. É essa burguesia encastelada que vimos dia desses reunida com Dilma, mendigando uma legislação especial para sobreviver à concorrência??? As desonerações fiscais decididas pelo governo buscavam atender à tal elite patrimonialista ou a um capital que, para má sorte até da nossa democracia, está de pires na mão, dependente do Estado onipresente? Sim, Bucci é mais elaborado do que aquela escória a que me referi. Isso não quer dizer que saiba o que diz. Sigamos com ele.
A coisa não para aí. Ela é mais complicada.
Quando vista em retrospectiva, a nossa hidra pode ser entendida e explicada, embora repugne. Agora, quando posta em perspectiva, na direção do futuro, prenuncia um quadro bem pior, que aponta para o colapso. À esquerda, a corrupção principia como um atalho pragmático, aparentemente eficaz. Mas logo ela se converte num fim e, tornada fim, nega e aniquila qualquer projeto de justiça social. À direita, ela principia nos hábitos ancestrais e depois, hipertrofiada, se converte na tal esperteza que devora o dono: tende a matar o hospedeiro, exaurir o ambiente e calcinar a terra.
O apocalipse é sempre um botão quente a ser acionado pelo articulista. O pessimismo serve para eliminar a suspeita de que a crítica é interessada e em favor de alguém. Mais uma vez, como se percebe acima, a direita traz um mal ancestral, que está em sua própria natureza. Já a esquerda não! Ela é boa na origem ou na essência; quer “justiça social”. O risco que corre é aderir ao “pragmatismo” — ou seja: ceder á direita, compreenderam?
Daí a sensação, que muitos vêm manifestando nestes dias, com notas de moralismo ou de realismo, de que hoje é imperioso conter a corrupção, fazê-la regredir. Mas como?
Sim, mais uma vez o “moralismo” apanha. Curiosamente, no texto de Bucci, ele se oporia ao “realismo”. Pergunto-se se o que, nele, é “realismo” não é exatamente o que seus amigos petistas chamam “pragmatismo” — coisa que o autor condena.
Uma parte, óbvia, caberia ao próprio aparelho de Estado, desde que ele saiba proteger-se minimamente das quadrilhas. Ao Estado, então, caberiam a repressão policial e o devido julgamento legal. Essa parte vem sendo feita, mas vagarosamente. Agora mesmo, por exemplo, foi uma investigação da Polícia Federal que começou a desbaratar conexões múltiplas entre o senador Demóstenes Torres, Carlinhos Cachoeira e mais uma penca de autoridades. A outra barreira é a impunidade. A propósito, o julgamento do mensalão ficou para quando mesmo?
Ehhh, Bucci!!! Em Dois Córregos, a gente fala assim: “Quem não te conhece que te compre”. Olhem ali a tática nem-nem. Depois de ter chamado a direita de mãe de todas as corrupções, ele indaga sobre o mensalão — uma linha, que mal pode fazer? A propósito: como a notável teoria do nosso pensador sobre o patrimonialismo se aplica aos crimes do mensalão? Teria sido só a cabeça do PT tentando comprar a cabeça da direita? Ora…
Mas é preciso mais. É necessário desmontar, no plano do discurso, as justificativas morais silenciosas que validam os negócios ocultos à direita e à esquerda. Trata-se, com o perdão da reincidência na metáfora, de cortar as duas cabeças da hidra. Só isso poderá renovar a cultura política.
Opa! Se Bucci fosse Salomão, teria cortado a criancinha ao meio mesmo. Em vez de ser sagaz, escolheria ser apenas justo, não é? Ora, cortar as duas por quê? Se a direita é a mãe do problema, basta cortá-la, e a esquerda, essencialmente boa, mas corrompida por seus adversários, voltará a seu ideário de justiça social. É a lógica de seu texto.
Isso, porém, não vem sendo feito. No fundo, muitos dos agentes políticos, no Brasil, ainda acreditam que a corrupção, no curto prazo, funcione. À boca pequena, chamam-na de mal necessário.
Quem chama? Por que esse sujeito indeterminado aí? Quem trata a corrupção como mal necessário — “Fazemos o que todos fazem” — são os amigos petistas de Bucci.
Ignoram que, uma vez acionada, ela passa a governar o processo, o que significa, hoje, sufocar a normalidade institucional e a própria política. O corruptor e o corrupto se acreditam despachantes um do outro, algo como “facilitadores”. Na verdade, são sequestradores da agenda pública.
Ignoram? Não ignoram, não! Eles sabem muito bem o que fazem. Vamos pegar um exemplo até pequeno, coisa baratinha para os padrões contemporâneos. O pessoal que fez lambança com as lanchas no Ministério da Pesca “ignorava” que estava “sufocando a normalidade institucional”? O petista que foi pedir dinheiro para a campanha de ideli Salvatti sabia ou não o alcance do que fazia?
Se formos capazes de olhar a hidra por esse prisma, veremos que as duas cabeças que nela despontam, a de esquerda e a de direita, são sócias. Xifópagas. Alimentam-se uma à outra. Vivem disso e para isso. Perderam-se de seus programas públicos.
Bucci não é meu pensador predileto, mas, neste texto, está especialmente ruim. Ele deixou claro qual é o “programa público” da esquerda — a justiça social. Mas não revelou qual é o da direta. Para ele, direita existe para assaltar os cofres públicos, para tomar para si o que aos outros pertence. Assim agiram, entre outros, Churchill, Adenauer, De Gaulle, não é mesmo? Tudo direita safada!
A corrupção é o capital sem lei. Todos os que a invocam, ainda que marginalmente, viram seus servidores. Sem exceção. Sem uma única exceção.
É… Cumpre encerrar como começou, no melhor estilo nem-nem do suposto pensador centrista. No percurso do texto, a gente viu bem por onde ele passou.
E só para encerrar, sem a intenção de nocautear Bucci com este parágrafo — porque, sinceramente, acho que seu texzto já foi devidamente desmontado. Mas sou obrigado a escrevê-lo em nome da coerência. Ele é um dos “intelectuais” que hoje estão empenhados em tornar viável a candidatura de Fernando Haddad à Prefeitura de São Paulo. Aliás, ele é um antigo entusiasta de seu colega dos tempos da Faculdade de Direito da USP, depois chefe de sua mulher no Ministério da Educação.
Tudo bem! Afinidades, fazer o quê? Ocorre que a campanha de Haddad, hoje, por determinação de Lula, está sob o comando de José Dirceu, o chefe de quadrilha (segundo o PGR). Acima, Bucci fez uma indagação quase retórica sobre o mensalão, para demonstrar seu desapego do petismo. Pois é… Está na pré-campanha de um candidato que hoje está sob o comando de Dirceu, o que, entendo, faz de Bucci também um comandado, ainda que indireto, daquele patriota.
Isso significa escolher uma das cabeças da hidra, não?