É asquerosa, para ser comedido, a argumentação do juiz Alexandre Abrahão Dias Teixeira, do 3º Tribunal do Júri do Rio, para conceder a liberdade aos PMs Fábio de Barros Dias e David Gomes Centeno, do 41º BPN (Irajá). Eles foram flagrados, no dia 31 de março, executando dois traficantes em frente à Escola Municipal Jornalista e Escritor Daniel Piza, na Pavuna.
Para lembrar: os bandidos já estavam rendidos, feridos, no chão, sem risco, aparentemente ao menos, de reação. Mas não se tem a certeza absoluta disso. Nota: no embate entre policiais e marginais, a estudante Maria Eduarda Alves da Conceição, de 13 anos, foi atingida na perna e na cabeça por balas perdidas e acabou morrendo.
Antes que continue, uma lembrança. Já recebi da Polícia Militar de São Paulo uma das mais altas honrarias concedias pela corporação: a Medalha Brigadeiro Tobias (de Aguiar). No ano passado, fui paraninfo de formatura de mais de 1.200 policiais. A PM sabe por que fui chamado para essas distinções: sou um defensor dos policiais militares que honram a sua farda. Mas jamais daqueles que executam pessoas ao arrepio da lei. Se foi o caso, gente assim depõe contra a polícia.
A decisão e o argumento
E não que a decisão do juiz — acatando, em tese, argumentação da promotora Carmen Eliza Bastos de Carvalho — seja absurda. O desastre está em seus argumentos.
Ao se manifestar à Justiça, a representante do MPE censurou o comportamento dos dois policiais, lembrando que mesmo a guerra conta com regras, mas observou que a prisão preventiva não cabia porque inexiste “qualquer notícia de conduta intimidadora ou fraudulenta por parte dos acusados”, porque “compareceram à Delegacia de Homicídios espontaneamente” e porque “mantiveram o local dos fatos íntegro para a análise dos peritos”.
Em suma, ao analisar o comportamento dos policiais, a promotora não viu as razões expressas no Artigo 312 do Código de Processo Penal para manter a preventiva: a) ameaça à ordem pública; b) ameaça à ordem econômica; d) risco à instrução criminal e C) risco de não se cumprir a lei penal.
Mais: ela lembrou que não está de todo descartada a tese da legítima defesa e que, nesse caso, a prisão preventiva não pode ser decretada. E ela tem razão.
Define o Artigo 314 do Código de Processo Penal:
A prisão preventiva em nenhum caso será decretada se o juiz verificar pelas provas constantes dos autos ter o agente praticado o fato nas condições previstas nos incisos I, II e III do caput do art. 23 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal.”
E o que estabelece o Artigo 23 do Código Penal? Isto:
“Art. 23 – Não há crime quando o agente pratica o fato:
I – em estado de necessidade;
II – em legítima defesa;
III – em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.
Excesso punível
Parágrafo único – O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo.
Insuportável
Assim, a concessão da liberdade aos dois policiais, com a prisão preventiva convertida em medidas cautelares — ficarão afastados das ruas, por exemplo — encontra amparo legal. Promotora e juiz, entendo, tomaram uma decisão defensável no mérito.
A argumentação do juiz Alexandre Abrahão Dias Teixeira, do 3º Tribunal do Júri do Rio, no entanto, é um desastre civilizacional. Poderia ter se contentando em ancorar sua decisão no Código de Processo Penal e no Código Penal. Ele decidiu, no entanto, fazer literatura ruim e, como direi?, “bolsonarizar” o argumento, o que sempre conduz ao obscurantismo. Ao fazê-lo, contaminou a própria decisão e a avaliação do Ministério Público Estadual.
O doutor disse ter passado horas e horas meditando, “especialmente [sobre] a voz das ruas”… Santo Deus! A voz das ruas, nesse caso, se confunde com o alarido bolsonarento nas redes sociais. E o homem ainda acrescenta, citando o desembargador Ricardo Rodrigues Cardozo:
“As relações sociais mudaram, e a magistratura precisa mudar também. O juiz moderno não pode mais ser aquela figura da ‘torre de marfim’, especialista em temas do Direito, mas insensível ao que acontece fora de seu gabinete”.
Tais palavras parecem justificar, deixem-me ver, os linchamentos, os justiçamentos, as punições ao arrepio da lei. Sempre que um juiz trata o arcabouço legal como “torre de marfim”, ou estamos diante de um demagogo ou de alguém que decide fazer política com as leis. A menos que o doutor esteja querendo brincar de tribuno da plebe.
Ao contrário do que ele diz, o juiz tem é de tapar os ouvidos com cera para não ser tentado pelas sereias da demagogia.
Reitero: a decisão que tomou tem amparo legal. Ele não precisava é ter escrito esta outra miséria:
“O julgamento destes fatos me dá a convicção de que a decisão, seja ela qual for, será alvo de apedrejamento público. Especialistas, mesmo sem conhecer o processo, farão ‘julgamentos’, criarão ‘teses conspiratórias’, ‘insinuações’.”
Não sou especialista. Não conheço o processo além do que se noticiou. Mas sei reconhecer uma tese que flerta com a barbárie.
Ele vai piorar muito os argumentos ao escrever isto:
“A sociedade, estou consciente, está desestruturada pela guerra assimétrica enfrentada nesta ex-cidade maravilhosa. O cidadão, no final, pretende tão somente viver em paz e merece pelos altos preços que paga em todos os sentidos. Enfim! A turbulência faz parte do jogo democrático. Assim como a promotora de Justiça, aceito esse ônus da função. Afinal, em momentos de intolerância extrema, nós, juízes, acabamos alvo de toda sorte de ataques!”.
Encerro
Não tenho paciência com esses homens e mulheres de estado que se oferecem como mártires ou salvadores da pátria. A revogação da prisão preventiva dos policiais se justifica na combinação dos Artigos 312 e 314 do Código de Processo Penal. E ponto.
O “conversê” do juiz é puro proselitismo obscurantista, a menos que ele ache que o Rio voltará a ser a “Cidade Maravilhosa” quando forças de segurança passarem a praticar penas de morte extrajudiciais nas ruas…
E para aborrecer alguns para valer, como recomendaria Voltaire: o que vai na fala do juiz reproduz não os acertos da Lava Jato, mas os seus vícios.
Todo mundo, agora, sonha em cair nos braços do povo e fazer justiça com a própria toga, como antes se fazia com as próprias mãos.
Sinto vergonha alheia.