Há alguns tipos interessantes por aí. Quando a realidade demonstra que suas antevisões estavam furadas e que suas esperanças eram vãs, eles tendem a achar que a culpa é de eventuais adversários intelectuais, que estariam, então, “torcendo contra”. É o caso da Primavera Árabe, que sempre achei — e continuou a achar — uma balela inventada por intelectuais e jornalistas ocidentais, alguns até de boa-fé. Eu acho que a humanidade ainda não inventou regime de governo melhor do que a democracia, mas aceito que possa haver povos, culturas e crenças que a rejeitem. Um pensador serelepe, a esta altura, tenta me dar uma estilingada antes mesmo de o texto alçar voo, quando mal move as asas: “Ora, Reinaldo, aquelas pessoas na praça, desta vez, estavam protestando justamente contra o autoritarismo islâmico”. Sim, eu sei. E, por isso, pediram e obtiveram um golpe de estado para afastar do poder os… autoritários islâmicos, que, não obstante, lá chegaram por intermédio das eleições.
Leio o seguinte num artigo (em azul):
“Se uma religião pretende ser estado, ainda que vá impondo paulatinamente a sua vontade (como faz o Partido da Justiça e Desenvolvimento, do primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan), o que se tem, com o tempo, é uma ditadura exercida por outros meios. ‘Islâmicos, então, jamais conhecerão a democracia?’ Resposta: não enquanto forem governados por partidos… islâmicos!! “Ah, mas, havendo eleições, uma agremiação religiosa fatalmente vencerá…” Bem, meus caros, então a resposta não é dada por mim, mas pelos fatos. E, é claro!, democracia sem eleição também não existe.”
Sim, o texto é meu, quando explodiram as revoltas na Turquia contra a progressiva islamização do país. Sempre que leio artigos em que esse país é citado como prova de que Islã e democracia são compatíveis, indago-me que diabo de democracia é essa que mete na cadeia jornalistas que são considerados opositores, que exerce uma severa patrulha sobre temas religiosos nos meios de comunicação e que vai, pouco a pouco, segregando os que não aceitam os valores impostos pela crença. Chamem aquele troço do que lhes der na telha: democracia não é. Se acato o regime turco como democrático, abro a possibilidade, então, de que um partido, no Brasil, atue como o da Justiça e Desenvolvimento , ainda que em nome de outros fundamentos e valores. Não sou do tipo que põe voluntariamente a corda no próprio pescoço. Ainda que eu soubesse dessa inevitabilidade, essa seria uma tarefa do inimigo. Com a minha concordância, não seria.
Sim, caros, este é o paradoxo da chamada Primavera Árabe: com eleições livres, vencem partidos islâmicos — e é uma vontade da maioria! — que fatalmente transformarão o estado numa extensão da religião. Para que isso não corra, é preciso, então, que existam salvaguardas e impedimentos. Mas esses elementos de contenção e salvaguardas, vejam só!, só podem ser impostas por intermédio das Forças Armadas, que, então, têm de dizer à maioria que ela não pode tudo.
Mubarak foi durante muito tempo a face da ditadura do Egito, mas não o ditador unipessoal do país. O que existia lá era um regime militar, que se viu na contingência de se reformar por ocasião dos protestos. Nos primeiros dias, foram para a praça contra o ex-presidente esses mesmos que agora chamaram os uniformes de volta. Depois a Irmandade Muçulmana assumiu a direção do processo, e o resto é história.
Entendo as lágrimas de muitos, mas não verto as minhas quando um governo autoritário cai. Evidentemente, não aplaudo golpes de estado — não aplaudi nem aquele que derrubou Mubarak; ou não foi golpe aquilo? Prefiro compreender o processo. Eleições, já disse, por si, não definem um regime como democrático — há quem se atreva até a falar em “democracia iraniana”. O Irã é aquele país em que os pré-candidatos à Presidência são submetidos ao Conselho da Revolução Islâmica, formado por aiatolás, que decide quais nomes serão ou não impugnados. Tenham paciência! Democracia não é conversa de místicos.
Adversários históricos do regime de Mubarak estavam na praça pedindo a intervenção do Exército, como liberais, social-democratas e esquerdistas moderados. Os cristãos também! E nem poderia ser de outra forma. Gozavam de razoável proteção no país, podendo professar a sua religião sem perseguição — se havia, não contava com o apoio do estado. Tudo mudou depois da dita “Primavera”: igrejas passaram a ser incendiadas, as casas, saqueadas, e se multiplicaram os mortos. A “democracia diferenciada” da Irmandade Muçulmana espalhou um regime de terror entre as minorias. Surpresa? No fim de março de 2011, Duda Teixeira, da VEJA, entrevistou Esam El-Eriam, porta-voz da Irmandade Muçulmana. Prestem atenção a estas perguntas e respostas.
(…)
Eu e meu fotógrafo viajamos até Soul, onde uma igreja e casas de cristãos foram incendiadas. Os moradores muçulmanos nos impediram de entrar na vila, acusaram-nos de ser espiões estrangeiros e nos ameaçaram… Parece-me improvável que estivessem a serviço de americanos e israelenses.
Se quiser, posso dar o telefone de uma pessoa na vila de Soul para acompanhá-los em segurança.
Quem está ateando fogo às igrejas?
O pessoal do Partido Nacional Democrático (de Mubarak), os agentes da segurança de estado e os criminosos. Estou triste porque bispos e o papa Shenouda III (da Igreja Ortodoxa Copia) apareceram em público para reclamar dos ataques apresentando-se como cristãos. Isso não é bom.
Eles não podem declarar abertamente sua fé?
Os cristãos devem se defender como civis, não em nome de um setor da sociedade. Somos todos egípcios.
Comento
Conclua-se o óbvio:
1: a Irmandade tinha o controle do que acontecia na área em que cristãos estavam sendo perseguidos;
2: a Irmandade acusava partidários do regime anterior, o que era escandalosamente falso;
3: um porta-voz de uma entidade político-religiosa achava que a comunidade cristã, mesmo perseguida, não deveria se manifestar como tal.
Advertência
É claro que isso deve servir de advertência para o encantamento basbaque de governos, de intelectuais e de jornalistas ocidentais com a dita “Primavera Árabe”. E acreditem: o que se viu no Egito é café pequeno em comparação com o que andam a fazer os “libertadores de Benghazi” na Líbia. Ali é carnificina mesmo. Só que inexiste um Exército organizado e que se confunde com estruturas do próprio estado, como há no Egito. As forças líbias eram formadas por tribos regiamente remuneradas por Kadafi.
É claro que é o caso de Obama se perguntar se é mesmo uma boa ideia armar os rebeldes sírios, ainda que Bashar Al Assad seja um carniceiro. Ocorre que, do outro lado, estão, por exemplo, jihadistas e membros da Al Qaeda. Em que dará a “Primavera Síria”? E que se note: as forças regulares de segurança do país são formadas, na sua maioria, de alauítas, a minoria religiosa a que pertence Assad. Um golpe só não o derrubou ainda por isso. Se e quando os rebeldes, coalhados de grupos terroristas, tomarem o poder no país, sabe-se lá o que virá.
Caminhando para o encerramento
Os fatos no Egito não estão a estimular o suposto preconceito de que Islã e democracia são incompatíveis. Mohamed Mursi não foi deposto porque é islâmico. É o contrário: porque pertence a um partido islâmico, não conseguiu ser governo. A razão é simples: o programa que ele tem busca satisfazer os anseios e as utopias da Irmandade Muçulmana. E que se registre: ela conseguiu destruir o que havia de estado funcional no Egito — que já era uma lástima. Os “irmãos” tomaram conta dos postos-chave do estado, e a burocracia entrou em colapso.
Os militares não puseram fim à “Primavera Democrática”. Isso é uma aberração. Puseram fim a um governo que ousou recorrer às regras da democracia para instaurar uma ditadura religiosa. Em que vai dar? Não sei. Depende agora do que fará a Irmandade Muçulmana. Só não venham me apresentar Mursi e sua turma como heróis do regime democrático, defenestrados por militares malvados. Aqueles milhões na praça a aplaudir o Exército como herói da libertação devem querer dizer alguma coisa.