“Estado de coisas inconstitucional”: é assim que o STF define o sistema carcerário brasileiro. Trata-se da violação ampla, constante e sistemática de direitos humanos fundamentais.
Não é novidade: todo mundo sabe que o sistema prisional brasileiro é um inferno. Há superlotação de celas; assassinatos, estupros e tortura; mistura de sexos; faltam água e higiene. E grande parte dos presos não deveria sequer estar presa. Os presídios são fábricas de criminosos perigosos e fornecedores de mão de obra para o crime organizado.
A novidade é a determinação à União (e aos estados) que apresente um plano para corrigir a situação.
Para o governo Lula, é um constrangimento: a esquerda é defensora dos direitos humanos e o ministro da Justiça acaba de anunciar um plano de segurança que promete construir mais presídios, mas não fala sobre a situação dos presos em si. Sem falar que o PT ficou treze anos no poder e nada fez em relação ao assunto.
Já os bolsonaristas acham que esse papo de direitos humanos é coisa de comunista. Bolsonaro sempre sugeriu que “vagabundos” devem ser encarcerados e esquecidos. Ou mortos. Augusto Heleno costumava repetir o repugnante gracejo de “direitos humanos para humanos direitos” (é de supor que os humanos “não direitos” sejam criminosos, usuários de drogas, moradores de favelas, pretos, pobres, desempregados, esquerdistas e outros “vagabundos”).
“A situação dos presídios foi a pauta da primeira sessão do STF sob a presidência de Barroso. A escolha é emblemática”
Bolsonaristas também vivem reclamando do “ativismo” do Supremo e de que o tribunal (que reputam também comunista) interfere nos outros poderes. Ou seja, deveriam reclamar enfaticamente da decisão do Supremo. Só que isso os colocaria na desconfortável posição de defender o governo Lula. Talvez seja melhor não bater bumbo.
Direitos humanos, evidentemente, não são coisa de comunista. São coisa de liberal. O artigo 5º da Constituição, que regula direitos individuais, se inscreve no contexto das lutas liberais contra o autoritarismo, que incluem o habeas-corpus (1679), os Bill of Rights inglês (1689) e americano (1789), a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa (1789) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (1948).
A situação dos presídios foi a pauta da primeira sessão do STF sob a presidência de Luís Roberto Barroso. A escolha é emblemática: Barroso deixa claro o que se pode esperar de sua gestão. É má notícia para os bolsonaristas: várias das pautas que lhes são mais caras — casamento homoafetivo, drogas, aborto, até terras indígenas — passam pelos direitos individuais.
O conflito entre o liberalismo do STF e o reacionarismo bolsonarista será acirrado. E com golpes abaixo da cintura: o bolsonarismo acaba de propor uma emenda constitucional dando ao Congresso o poder de revogar decisões do Supremo que “extrapolem os limites constitucionais”. É obviamente inconstitucional: mesmo que passe, o que é quase impossível, será imediatamente derrubada… pelo STF. Mas serve como amostra do que vem por aí.
A política brasileira continuará na base do grito, choro e ranger de dentes por um bom tempo.
Publicado em VEJA de 6 de outubro de 2023, edição nº 2862