O liberalismo, filosofia política criada na Inglaterra do século XVII, tem por base uma ideia simples: todos os seres humanos são livres e iguais. É uma ideia tão repetida que chega a ser banal. Mas não era nada banal naquela época, quando se acreditava que nobres eram melhores do que plebeus, ricos eram melhores do que pobres e homens eram melhores do que mulheres. Quando havia servidão na Europa e escravidão no resto do mundo.
A tese liberal implicava que qualquer um, até um servo da gleba, tinha o mesmo valor que o rei ou o papa — e, portanto, os mesmos direitos e deveres. Era uma tese subversiva, que fomentaria dezenas de revoluções — incluindo a independência americana, a Revolução Francesa (que criou a palavra “esquerda” para identificar a posição liberal) e a Inconfidência Mineira — e mudaria a face do mundo. Todos os países desenvolvidos hoje, sem exceção, são democracias liberais; a Constituição brasileira é liberal.
A ideia de que todos somos livres e iguais fundamenta quase todos os valores de nossa sociedade. Dela derivam liberdade de religião e separação entre Estado e Igreja; liberdade de pensamento e de expressão, de imprensa. Igualdade entre sexos e raças, direitos civis, direitos humanos e das minorias, livre associação, liberdade econômica, livre-iniciativa, direito à propriedade.
Foram ou são bandeiras liberais a abolição da escravatura, a campanha dos direitos civis nos Estados Unidos, o sufrágio universal, a independência das colônias, o feminismo (pelo menos o não radical), a luta contra o racismo e o nazifascismo e muito mais. Até o identitarismo, sumamente iliberal em seu esforço de cancelar e calar quem não reza pela cartilha, tem por base um valor liberal: o respeito e a valorização da diversidade.
“A esquerda é auxiliada no esforço de desconstrução por reacionários envergonhados”
Apesar disso, no léxico político brasileiro não há palavra mais enxovalhada do que liberalismo. A esquerda diz que liberais são racistas e escravocratas, fascistas e misóginos, e dá a entender que só pensam em dinheiro e não estão nem aí para o sofrimento do povo. É estapafúrdio, porque ninguém tem currículo semelhante ao dos liberais no combate ao preconceito e a opressão, e, até meados do século passado, quase todas as iniciativas sociais no mundo, como legislação trabalhista e educação pública e gratuita, foram liberais. No Brasil, nos catorze anos em que a esquerda ficou no poder, segurança, saúde, educação e saneamento em nada melhoraram, e a política social que mais deu certo foi o Bolsa Família, criado por liberais.
A esquerda é auxiliada no esforço de desconstrução por conservadores e reacionários envergonhados, que se afirmam liberais ou “liberais em economia” — sugerindo que “todos somos livres e iguais, mas só em economia”. Ou como se fosse possível apoiar o governo Bolsonaro e ao mesmo tempo ser liberal.
A demonização do liberalismo é muito prejudicial para o Brasil. Ela atrapalha o debate, gera preconceito contra ideias que dão certo e dificulta o entendimento necessário para derrotar Bolsonaro e reconstruir a democracia. Infelizmente, não há motivo para crer que ela vai acabar tão cedo.
Publicado em VEJA de 26 de janeiro de 2022, edição nº 2773